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Além de necessidade humana vital, de sinal de uma racionalidade ativa e inteligente, fazer grupo é um direito consagrado na Constituição. Esta, no artigo 46, diz concretamente que os “cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações”. Mesmo em torno do mesmo ideal, o grupo faz sentido e é rico se existir pluralidade, posições adversárias [diferentes], que eventualmente até podem lograr o mesmo fim por caminhos distintos, e não hostis, que converterão as palavras em arremesso bélico, ao invés de fertilizantes de ideias. O unanimismo é ontologicamente perigoso, porque dificilmente se percebe em absoluto de que é feito. Com o tempo, tende a piorar, degradando até ao definhamento quem pretensamente é unânime, descobrindo a insuficiência capilar de quem queria ter sido e não teve a esperteza de conseguir e marginalizando, por incapacidade de atração, quem não esteve para se aborrecer [mesmo se com competência para tal] com os ‘guerrilheiros das palavras’ hostis e não adversárias.

Para funcionar, um grupo precisa de autoridade. Distingue-se de autoritarismo, mas também não se pode equivaler a uma coordenação ‘mole’, de quem quer empenhadamente focar-se a todo o custo em evitar aborrecimentos. Na vida pública, o seu não advento é uma contradição e uma impossibilidade lógica. Quem tem a autoridade não tem ‘súbditos’, mas tem parceiros. Para a exercer, não pode permitir que a agenda se esgote em diagnósticos ou deixar que o estudado e decidido nunca chegue a executado. Se ninguém pensa, tem de pensar. Se ninguém avança, tem de avançar. Se ninguém decide, tem de decidir. À frente, para que os outros se convençam a ir também. E sempre pela força da argumentação.

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Assumir ser parte de um grupo começa por implicar esta humildade de saber ser parte e não todo. “O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar […] bem provido dele”. É com uma ironia, convém lembrar, que Descartes abre o ‘Discurso do Método’, o livro fundador do racionalismo ocidental. Assim, a plataforma de diálogo é lugar de busca do bom senso [comum], das palavras verbalizadas e fundamentadas, que requerem sempre companhia e continuidade nas palavras dos outros. Não é o espaço dos silêncios cúmplices, da agenda escondida, geralmente fermento de maledicência posterior. Há toda uma teatralidade própria que admite elevação de voz, gesticulação efusiva, mas também um código de conduta que distinga pessoas e cargos e que é escola de lealdade. O discutido fica no lugar da discussão, eventualmente escrito para memória futura e salvaguarda dos intervenientes. O que sai é uma decisão participada, legitimamente obtida e que, como tal, merece a adesão de todos.

Ser membro de um grupo para exigir que o mesmo decida o que eu penso é a ‘quadratura do círculo’, um desgaste inconsequente e desnecessário. É mais rápido e menos dispendioso para todos, mesmo para mim próprio, que eu simplesmente decrete o que penso. Constituir um grupo é um programa e uma pedagogia de atuação, mais que um simples formalismo ocasional. Caminha-se mais devagar, mas importa não parar, que seria o mesmo que regredir, nem fazer do tempo da maturação das coisas a desculpa para tudo, correndo o risco da podridão aparecer sem darmos conta.

Há um grande problema nos grupos, que tem a ver com a paternidade dos problemas. Todos já presenciámos uma discussão conjugal, em que um membro do casal diz a outro que o ‘teu’ filho voltou a fazer asneira. O mesmo que, na semana seguinte, se gaba diante de alguém que o ‘meu’ filho teve boa nota. Na parábola bíblica conhecida como ‘do Filho Pródigo’, quando este regressa, o pai diz ao irmão mais velho ‘o teu irmão voltou’. Na resposta ao pai, este diz que ‘esse teu filho’ gastou o dinheiro mal gasto. Não diz o meu irmão! Na canção ‘A avó da Maria’, dos Deolinda, cantada pela sua avó materna, a Maria ‘que é um amor’ e que ‘vai ser princesa’ sai à mãe, ao passo que a Maria que ‘acorda com os pés de fora’, ‘faz birra’, ‘beicinho’ e ‘bate o pé’, sai ao pai. Todos queremos ser pais da ‘estrela’ e dificilmente engolimos ser pais da ‘ovelha negra’, é o que é. Todos conhecemos um colega gordo ou já fomos esse miúdo gordo, apanhado pelo dono do pomar a roubar fruta, juntamente com os ágeis que conseguiam correr depressa e se livraram das culpas e de uma boa sova.

As coisas púbicas, como se vão fazendo com o tempo, têm sempre muitos pais e muitas mães, que agora, felizmente, nem podem ser incógnitos. Querer tirar fotografias apenas com os ‘filhos bonzinhos’, não é justo. Do mesmo modo, não é sério nem leal querer que aquele que corre menos fique com as culpas todas. Se não for por mais nada, também nós, amanhã, podemos engordar. E mais vale prevenir.

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