Adérito e Fernanda Alecrim são um casal de meia idade, verdadeiros patrões dos seus destinos, filhos já criados – um engenheiro na Alemanha e uma advogada na capital – e que decidiu percorrer a mítica Estrada Nacional Segunda, aquela estrada de que toda a gente fala, mesmo os que nem sabem onde começa e termina, mas que sobre ela peroram porque sim e porque as redes sociais tratam de terraplanar o espaço “informativo”, entremutando-o com modas e tendências ou com uma quase espécie de ordálio, cujo não cumprimento pode levar à excomunhão pura e simples.
O casal partiu da sua aldeia no respetivo Renault Clio de 2010, com apenas 90 000 Km
– Está como novo, mudei-lhe a correia da distribuição, canta certinho como uma concertina!, assevera o mecânico, José Grilo enquanto esfrega as mãos em desperdício e mal disfarça um traque por entre o fato de macaco azul – Auto Grilo, Lda – manchado a óleo e massa consistente, garantindo boa viagem ao casal.
rumo à ponta Norte da estrada e de lá até ao extremo sul. Os tais mais de 700km, coisa para 5 ou 6 dias, nas calmas e para ver bem a coisa.
Pelo meio, as dormidas em pensões e hotéis de média gama e um ou outro almoço e jantar em restaurantes de beira de estrada
– Uma dose de frango assado com batatas fritas e salada, certinha para os dois e vinho da casa. Pouco porque o carro não é inteligente.
e as paragens no Intermarchete mais próximo para ter umas coisas na arca/geleira azul que está presa por umas fivelas na mala do bravo Clio: pão, fruta, uns fiambres, umas mortadelas, uns sumos e até umas minis para cortar.
A estrada, em alguns troços, já teve melhores dias, levando a que Adérito inicie a sua habitual ladainha contra os políticos e autarcas, nenhum deles capaz de pagar o arranjo da suspensão do utilitário gaulês, caso ela se ressinta do mau piso
– Sempre a mesma merda, andam para aí a falar da estrada, que isto, que aquilo, mas tapar buracos, está quieto, arranjar as bermas nem em sonhos. E andamos a votar nisto e a comer as tretas que dizem na televisão e nos “saites”, vendendo um produto que eles não comprariam!
mas a jornada tem de seguir, indiferente aos lamentos de Adérito, aos buracos da via e aos suspiros de Fernanda
– Reclamas de tudo, homem! Até te faz mal ao estômago! Ainda arranjas uma Ursela por via dos embrulhos da digestão!
– Úlcera, mulher de Deus, Úlcera! Vê se aprendes a falar!
– Ou isso! Também tens a mania que sabes tudo! Raio do homem!
e posta esta conjugal altercação, uma hora de silêncio, para ruminar as frases sendo que, ao segundo dia, chegam a Penoburaco, uma pequena vila encavalitada num morro, ao fundo de um vale, à beira rio.
No largo principal da vila, lá estava o Presidente da Câmara com um saco de papel cotendo pastelaria e palitaria tradicionais do concelho, assegurando que Penoburaco tem bom ar, boa água, boas árvores, boas praias, bons políticos – menos os da oposição – e tudo é excelente por sua (deles) obra e graça.
Fernanda agradece e ri entre dentes e com algum embaraço por estar na presença de um belo autarca e respetivos ajudantes. Já Adérito, batido e desconfiado, permitiu-se discordar de algumas coisas, nomeadamente que em termos de árvores, sim senhor, são muitas, mas praticamente todas da mesma espécie, vinda lá do continente dos Cangurus e mais uma outra, ambas mais ou menos pragas
– É bom que o senhor presidente tenha um bom serviço de distribuição de água e saneamento, porque com tantos eucaliptos, a água das nascentes é toda chupada!
enquanto o Edil tira o casaco
– Está calor, não acha?!
e um dos adjuntos lhe segreda qualquer coisa ao ouvido e o presidente avança, confiante
– Temos um excelente serviço de águas e saneamento. Não há falta de água em lado algum e o saneamento é super eficaz e sem falhas. Praticamente todas as casas tem fossas!
com Fernanda a perscrutar o fundo do saco e Adérito a queixar-se que tem de ir dormir à cidade porque em Penoburaco não há Hotel e nada se passa nas ruas da vila, mais a mais com estra coisa da pandemia, mas pronto e que os programas da televisão em direto só mostram o que lhes é preparado e vai-se a ver, as pessoas são enganadas e bem enganadas e
– Oh senhor Adérito, olhe que não é bem assim! Temos um Centro Cultural em que o nosso partido, perdão, as nossas estruturas culturais promovem eventos de grande qualidade, todos devidamente cobertos e elogiados de forma expontânea e permanente pelo principal jornal do concelho, o “Penoburaco Diário”, temos uma Casa de Hóspedes e Alojamentos Locais disponibilizados por excelentes empresários do concelho!
o que o casal queria era ir embora, já farto daquele amuse buche de propaganda e auto-elogio que, pelo menos em Adérito, causa uma certa urticária que leva à desconfiança.
– É sabido que quando um político me diz que uma coisa é de certa maneira tendo sempre a achar que é da maneira contrária,
adianda Adérito sentenciando ali a coisa.
O casal entra no seu Clio e dirige-se para a estrada que ladeia a rio
– Com muitas curvas, mas dizem que é bonita!
rumo à cidade próxima para a pernoita e no dia seguinte retomariam a Estrada Nacional Segunda, rumo a Sul e para começar o dia, no vizinho concelho de Vila Velha de Apoiares e daí até Cóis e adiante.
Antes disso e ainda na pacata vila, lá tiraram a fotografia da praxe nos contraplacados de tipo Banda Desenhada e para registo de paragem, lá se dignaram deixar em Penoburaco, euro e meio que foi o que custou um garoto e um descafeinado no café dos turistas.
António Luís