Aquele que ali vai é o José Funesto.
Morava ao fundo do lugar, numa rua de cú tapado. Para voltar para trás havia que pedir licença ao aperto das paredes e ao reles empedrado do chão e cuidar de não arranhar as esquinas. A casa dele era quase dentro da ribeira. Em certos invernos de muita água, algumas vezes as margens entravam-lhe casa adentro, aos beijos e abraços com as mobílias dele e da mulher dele que partiu antes dele, há coisa de meio ano
– Passou ali agora onde vai ele. Pelo que se percebe, ele não aguentou e apressou o reencontro com ela. Chamava-se Benilde. Coitada. Trabalhou, trabalhou, trabalhou. Era o único verbo de que conhecia todos os tempos e todas as conjugações e artimanhas da gramática.
José Funesto era daqueles homens de boca cheia. As palavras caiam-lhe como perdigotos, fugidas ao corte dos dentes e em certos dias um guarda-chuva tornava-se útil. Era frequente dizer que mesmo num céu sem nuvens era sempre possível que chovesse. Fosse por obra e graça de Deus
– Quando Deus quer até do leste faz chover!
fosse por sua própria ação, fosse, lá está, por via das palavras que lhe caíam sem qualquer cautela ou cuidado. O povo tratou logo de lhe colocar a etiqueta. Foi a Maria Palmira, uma solteira dedicada que era perita em alcunhar. Um dia, com um dos homens que habitualmente acompanhava, aprendeu o significado de “Funesto”, pelo que decretou na sua solenidade alcoviteira que haveria de o tratar como tal, à conta dos arranhões que a queda de palavras lhe provocava. Provavelmente alguma lhe acertou em cheio nas pernas e nunca lho perdoou.
Mas o povo simplifica tudo e por isso ele era conhecido apenas por “Ti Funesto”.
Não se pode dizer que fosse mau homem. Tinha lá as coisas dele, como toda a gente tem. Nisso ele cumpria com quase toda a normalidade bípede, conforme ditam os manuais que todos os dias se escrevem desde que a espécie humana existe e impera sobre todas as coisas. Aliás, a única coisa que o Homem ainda não conseguiu estragar foi o tempo. Esse, por mais que se atrasem os relógios, anda sempre para a frente. E prova disso é que lá vai ele ali na estrada, com aquela gente toda calada atrás dele. Alguns nem deviam lá ir, que o trataram mal. Se calhar é o peso da consciência que os comanda e lhes movimenta as pernas. Pesa mais do que uma carrada de lenha molhada.
O meu olhar detém-se.
Observa parado a curva suave da Serra, com uma parte escondida numa invisibilidade de névoas, tudo uns cinco quilómetros à frente. Esvazia-se. Parece preso na ponta de qualquer um dos mil eucaliptos que forram as meigas encostas da serra. Parece procurar algo oculto naquele lugar. Chega a encomendar dois suspiros às entranhas, arrancados, puxados num esforço quase remotamente caridoso, com estreita passagem para o exterior. Um deles acaba sincopado porque voltaram as palavras faladas
– A Maria Palmira acabou maluca. Soube que foi para a capital à procura do que aqui não tinha. E tinha pouco. Um tão pouco que nem homem tinha. Ia tendo, por vezes… Calhou um dia ter de lá ir e disseram-me por onde ela habitualmente andava. Fui até essa zona à procura dela.
Nesse dia, pelo caminho, já numa das ruas da capital, cruzei-me com um casamento indiano, ou paquistanês, imensa gente, imensos tecidos cheios de cores, os convivas como se eles próprios fossem lápis de cor, ou de cera, aguarelas de si próprios e do que são, pintando-se em passos incertos pelo jardim das fotos.
Mantive-me sempre suficientemente perto e longe para a perceber mas não ela a mim. Um jogo de matreirices, alimentado pela minha curiosidade e refreado pela nenhuma vontade que ela me visse e se me dirigisse, fosse em que modos fosse. A dada altura só podia ser ela. Maria Palmira, dada como maluca.
Uma mulher entrada no tempo por uma porta de vidros quebrados que a arranharam, sentada num degrau de soleira, degustando sem expressão um cigarro castanho-escuro, as pernas pousadas num passeio, com feridas expostas junto aos pés e na parte visível das pernas e dos braços, uma pele escurecida pelo pó, pelo sol e pela ausência de água, seca de cremes ou outros atavios, de cuidado básico. O resto do corpo está lá, existe, mas é como se não existisse, acompanha-a de perto, sem abraços, caminha
ou senta-se
com ela em silêncio e aquando dos cigarros, ambas embrulhadas no erro do fumo, penduradas na pequena chama alaranjada, a mulher
A Maria Palmira
fitando o chão, jurando querer e poder contar todos os grãos de pó da calçada, uma voz abafada e em arrasto
– O que mais há para fazer nesta cidade de loucos?
três mil trezentos e quarenta e dois, três mil trezentos e quarenta e três, três mil trezentos e quarenta e quatro, três mil trezentos e quarenta e cinco, mais uma passa no castanho cigarro, um tempero de tosse
– os cigarros também são feitos de tosse!
três mil duzentos e vinte e quatro, ou será três mil oitocentos e setenta e seis? Se calhar começa de novo a contar, um, dois, três, quatro, mais uma passa no coto do cigarro, a defesa dos dedos, um cão que se acerca dela, indagando-se numa interrogação de urinas, um movimento da perna menos ferida e o cão a fugir, o olhar da mulher
A Maria Palmira
finalmente a mover-se e logo a prender-se de novo na esquina em frente onde dois homens engravatados discutem a justeza das luvas que seguram nas mãos, a esquina mais à vista, sem que se tenha de pagar, não faz perguntas, não responde, não sorri, não chora, é só uma esquina, é só uma fuga, é só uma mulher
A Maria Palmira
é só um cigarro
que já acabou
castanho, com uma pequena chama laranja, agora já extinta.
A família que ainda tinha, uns sobrinhos afastados que foram reconhecê-la à morgue mandaram-na para o cemitério e para lá está há ano e meio, coberta com os grãos de pó que tentou contar nas ruas da cidade.
Agora não lhe falta tempo e se não tiver uma cigarro castanho que a distraia, seguirá contando sem se enganar até ao fim dos tempos.
*Nota do autor: Este texto é ficcionado. Qualquer semelhança com lugares, factos ou pessoas é apenas coincidência.
António Luís