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Por justiça e honestidade intelectual, abro com uma declaração de ‘interesses’: trabalho, numa percentagem significativa da semana, como formador na Escola Profissional Beira Aguieira. Comecei por imaginar a conflitualidade que poderia resultar do ‘risco’ de escrever este texto. Amadurecida interiormente esta minha intuição espontânea, a escrita acabou por emergir como um dever humano e cívico.

O preliminar serve de antecâmara do ‘facto’: uma pessoa assaltou a estação dos CTT de Penacova, depois de ter protagonizado semelhante ato na agência da CGD local, dispensando-me de mencionar aqui atitudes igualmente passíveis de condenação, alegadamente envolvendo o mesmo a[u]tor. E isso tornou-se manchete de discussão pública na semana.

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Regresso ao tema, não pelo conteúdo em si, mas pelas reações socialmente despoletadas, quer no ‘ruído de fundo’, quer no espaço digital. Entendo que se estendem por diversos registos, desde a ignorância à desumanidade.

Elejo um começo, que não é necessariamente o princípio cronológico dos acontecimentos, mas que me parece muito relevante neste contexto próximo da história. Um cidadão é apanhado em flagrante e, presente a tribunal, é libertado com a medida de coação ‘termo de identidade e residência’. Para o caso, relevo o elemento da alegada circunstância de ilegalidade em Portugal, mas intriga-me o facto de tal medida de coação ser aplicada a um indivíduo sem residência, que, na prática, vive ‘na rua’. Entendo como resposta humana, que se esgotem as tentativas de resposta social a uma pessoa nestas circunstâncias. Parece-me que, uma vez goradas as repetidas tentativas, que envolveram diversas entidades, importará fazer cumprir a medida de coação e entregar à justiça o que é da justiça. Paralelamente, este gesto deve ser acompanhado da necessária coordenação com uma resposta social, que, em Penacova, não existe para o nível de problemáticas envolvidas nesta circunstância concreta.

Onde me parece que a argumentação desce abaixo dos limiares mínimos da humanidade é no conteúdo de algumas opiniões complementares. Falo da acefalia do incitamento à violência física, como se vivêssemos num qualquer ‘estado selvagem’ desgovernado e em que a ‘solução’ se situará no armamento [esperemos que só figurado] de milícias populares, arregimentadas sabe-se lá por quem ou em nome de quê. Falo da manifestação racista, que uns dizem que é estrutural e outros dizem que nem existe [e o problema é, em princípio, este mesmo] e, sobretudo, nos danos colaterais que este tipo de atitudes terão num território como o nosso, no [não] acolhimento de uma comunidade africana cada vez mais significativa. Falo na xenofobia do fácil, simplificador e descartável ‘vai para a tua terra’, num território onde tanta gente fez vida nas ex-colónias e, fundamentalmente, onde a emigração é um dado com um peso muito significativo na melhoria das condições de vida das pessoas. Falo, por fim, na confusão ignorante, ingénua ou propositada entre a árvore e a floresta, colocando em causa uma comunidade escolar [a Escola Beira Aguieira não é só a Direção] e, sobretudo, um significativo conjunto de rapazes e raparigas oriundos de países africanos de expressão portuguesa, que fazem em Penacova a sua formação.

Certamente que a Escola Profissional não possui a exclusividade de todas as virtudes, simplesmente porque não existe na formalidade de um decreto, mas é feita quotidianamente por pessoas com potencialidades e limites. Creio que não está claro que, por um lado, a Escola desenvolve um negócio na área da Educação e, por outro, a Formação de jovens não é bem um ‘negócio convencional’, dada a incomensurabilidade do seu alcance, que ultrapassa largamente a perspetiva do lucro. Quero com isto dizer que a Escola precisa de ser sustentável para ter futuro, mas que os seus frutos ‘sociais’, em concreto no Concelho, estão/podem estar largamente para lá da questão financeira. Formar integralmente [e não só no conhecimento] pessoas é o melhor investimento de um qualquer território e devia residir aí o nosso maior esforço de criatividade, de concertação de sinergias e de reflexão alargada de horizontes. Pelo menos.

A pergunta que, assim creio, deve ecoar é se é o não importante a Escola Profissional no e para o Concelho. ‘No’, com o sentido de ser geradora de dinâmica social, criadora de postos de trabalho, divulgação de Penacova além fronteiras… ‘Para’, no sentido de capacitar jovens para o mercado de trabalho, fortalecendo o tecido empresarial, e fixar alguns dos alunos que atrai, nomeadamente pelo envolvimento ‘cultural’ no dinamismo vivo desta região. A restauração local ainda não despertou para os jovens formados na área da cozinha/pastelaria e restaurante/bar [e mesmo de turismo]. As IPSS’s locais ainda não terão interiorizado a interessante ponte com a Escola na área do curso de ‘técnico auxiliar de saúde’. A sociedade civil em geral, o senso comum, não terá ainda colocado na agenda, por exemplo, a existência na Escola de um restaurante pedagógico, com dias abertos à comunidade. Não creio, por fim, que as conversas no sentido do Concelho discutir uma proposta de formação adequada às necessidades descortinadas no terreno concreto tenham ainda ocorrido com a clareza de opções que o assunto merece.

Neste sentido, eu mesmo já tentei fazer presente projetos da Escola a todas as juntas de freguesia, a filarmónicas, grupos de teatro, escuteiros, ranchos, fanfarra, etc… A questão central passava por apresentar um projeto recente da EBA na área da qualificação de adultos e por desenhar possibilidades de participação dos alunos africanos [sobretudo] em algumas atividades associativas. Em alguns casos, resposta acolhedora e manifestação de intenções. Em muitos, ausência absoluta de resposta. Infelizmente, a partir de nenhum se conseguiu ainda gerar qualquer consequência.

Porque esperamos e o que será preciso fazer? Do facto acontecido, importa partir para a reflexão da raiz, mas fundamentalmente da meta. As perguntas positivas é que geram futuro consequente. Entreter o espaço público com o enviesamento desfocador de questões, com maledicência oportunista e manipuladora ou ocupar as mentes com superficialidades e inconsequências não é certamente caminho.

Luís Francisco Cordeiro Marques

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