A violência doméstica é um problema de homens que, na maioria dos casos, afecta mulheres. De acordo com a estimativa global publicada pela OMS (Organização Mundial da Saúde), uma em cada quatro mulheres em todo o mundo, já foram vítimas de violência verbal, psicológica, física e/ou sexual, praticada pelos actuais ou ex-maridos/companheiros/namorados, violência que nalguns casos termina com a morte da mulher.
Em Portugal, a violência doméstica é crime público desde 1999, o que significa que o procedimento criminal já não está dependente de queixa por parte da vítima, bastando uma denúncia ou o conhecimento do crime, para que o Ministério Público promova o processo. Tratou-se de assumir perante toda a sociedade, que a violência doméstica é um crime e que esse crime diz respeito a todos.
Foi o momento de pôr em causa, decididamente, e em termos da própria sociedade, a velha expressão popular de “entre marido e mulher não se mete a colher”. Por outro lado, evitar que a vítima fragilizada – por várias circunstâncias em que se inclui a relação de poder desigual entre agressor e vítima – fosse ameaçada e/ou coagida a retirar a queixa, efetuada num momento de maior desespero e violência, para logo de seguida, no ciclo seguinte, o agressor procurar a reconciliação, renovando votos de amor e de mudança, que, habitualmente não respeita, perpetuando, por anos, ciclos de violência.
Passaram-se já mais de duas décadas desde que conseguimos esta importante conquista que permitiu alterar positivamente a própria percepção social do crime e a intervenção na problemática. Lamentavelmente, ainda continuamos com números esmagadores de violência doméstica. Números dramáticos no que respeita a mulheres assassinadas todos os anos em Portugal.
Estamos, neste momento, a viver um contexto social muito específico, que tem a ver com a pandemia e com o tempo de confinamento. Muitas mulheres ficaram/ficam em casa fechadas com os agressores e a situação de crise agudiza os conflitos. A já baixa tolerância à frustração do agressor, acusa a adversidade social e aquele descarrega sobre o elo mais fraco – a mulher que tem à mão, esta quantas vezes dependente do homem/agressor por questões económicas e pelos filhos. A violência deve ter aumentado neste período e, em muitas situações, agravou-se, com toda a certeza, ainda que o número de casos denunciados pareça não o reflectir.
Enquanto uma mulher for vítima de violência, ela não é livre, pois não tem os mesmos direitos que todos nós. É uma questão de cidadania, é uma questão de direitos humanos, é uma questão de democracia. Não podemos permitir que (mais de) metade da nossa população possa sofrer violência por parte da outra metade. Evoluímos imenso nestas duas décadas, mas é preciso, todos os dias, ir um pouco mais longe. E é importante não esquecer que nem todos partem do mesmo patamar, nem têm as mesmas ferramentas de afirmação e de progressão social numa sociedade iníqua.
A cultura tem sido usada para defender, explicar ou desculpar a violência de género. As concepções sociais sobre a representação da masculinidade induzem a ideia de que os “homens são superiores às mulheres”. Desse modo, cria-se um modelo de “dominação masculina” que é incentivado desde a infância, como descreve o antropólogo Pierre Bourdieu, o qual induz o indivíduo a demonstrar a sua força de supremacia e controle sobre os outros.
O pensamento social machista legitima o uso da violência, seja física ou verbal, como justificativa para afirmar ou reafirmar a posição hierárquica de superioridade, enquanto às mulheres se continua a dizer “tens que aceitar e perdoar (…) a vida é assim (…) há que ter paciência (…) os homens descontrolam-se facilmente (…) mas ele gosta de ti e dos filhos”. Reforça-se junto das mulheres vítimas o sentimento de obrigação de manter a situação familiar e protecção dos/as descendentes, factores que a par de vulnerabilidades emocionais, decorrente das próprias violências, contribuem para que aquelas desculpabilizem, normalizem e levem muito tempo a libertar-se da situação.
Consequência das desigualdades de género e assimetrias de poder, histórica e socialmente situadas, este flagelo é subestimado e parece reproduzir-se naturalmente. Os mais jovens reproduzem comportamentos de violência nas relações de namoro, permitindo perpetuar e naturalizar os maltratos contra as mulheres. Segundo um estudo efectuado pela Universidade do Minho, os casais mais jovens agridem-se tanto quanto os mais velhos. Outro estudo, este da Universidade de Coimbra, indica que uma considerável percentagem de jovens considera normal exercer pressão para obter contacto sexual. Dados tão preocupantes entre os mais novos – que, afinal de contas, têm responsabilidades acrescidas pois constituem a geração academicamente mais preparada de sempre – significa que todos, como sociedade, estamos a falhar.
Demoramos a mudar mentalidades. Perpetuamos a ideia absurda de que o amor autoriza a posse e de que o ciúme exacerbado é uma prova irrefutável de amor. É isso que explica o quanto, muito para além da violência facilmente identificável como tal, se consideram aceitáveis comportamentos de controlo invisíveis, como vasculhar telemóveis e contactos, criar perfis falsos nas redes sociais para vigiar os passos do outro ou pedir-lhe as passwords como sinal de confiança mútua. Ou gestos ainda mais subtis, como decidir o corte de cabelo, a roupa ou os locais que frequenta.
A própria legislação que temos – e que pune o agressor – continua a reflectir claramente as desigualdades entre homens e mulheres, fruto de uma cultura paternalista que fomenta a desigualdade de género ao sobrevalorizar a figura masculina em detrimento da mulher, quer no direito de família, quer no cível, com uso de termos manifestamente arcaicos como “pater familias”, em que o homem surge como figura de referência e de identificação social.
Aliás, no sector do Direito, há, sempre houve, concepções conservadoras e até retrógradas das desigualdades sociais e de género, que promovem a discriminação e misoginia, chegando a reproduzir-se barbaridades disfarçadas de cientificidade, que contribuem para a formação de futuros juristas, e que posteriormente são reflectidas em decisões judiciais, em que ficam patentes os preconceitos e a ideia de supremacia masculina.
Quantas vezes enfrentar o processo judicial, não acaba por ser mais violento para essas mulheres do que a própria violência. Quantas vezes mulheres vítimas não são desvalorizadas, humilhadas, re-vitimizadas pelos preconceitos da magistratura. E não existem instrumentos/meios efectivos para afastar do sistema judicial, operadores com clara falta de preparação e conhecimentos para intervir/decidir em áreas tão específicas como a violência doméstica, que exige maior especialização e rigor por parte dos aplicadores da lei, mas também dos profissionais que lidam com as vítimas.
Prevenir e combater a violência contra as mulheres, é prevenir e combater desigualdades e assimetrias de poder, através de uma efectiva educação para a igualdade e promoção de campanhas de sensibilização e de informação que fomentem um ambiente social e familiar intolerante à violência; mas também pelo “empoderamento” de mulheres, combatendo as desigualdades sociais e económicas e as dependências materiais e emocionais, envolvimento dos homens nas campanhas contra a violência, e práticas jurídicas e aplicações adequadas das leis existentes.
A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima – APAV disponibiliza no site www.apav.pt informação sobre o tipo de apoio prestado.