A proteção proporcionada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores: realidade ou mito? A salvaguarda do Regulamento (CE) n.º 4/2009 de 18 de Dezembro de 2008, relativo à execução das decisões em matéria de obrigações alimentares.
Pode parecer um simples lugar-comum, mas a verdade é que o incumprimento do pagamento das pensões de alimentos devidas a filhos menores constitui nos dias que correm uma verdadeira chaga social do país, que atinge e é transversal a todas as classes sociais. E a isso não será decerto estranho a crise económica e social que se apoderou da Europa a partir de 2008, da qual recente crise pandémica causada pelo COVID-19 parece ser um decalque ainda mais avivado.
Com efeito, a experiência revela-nos que, ano após ano, os Tribunais de Família e Menores têm vindo a ser confrontados com cada vez mais processos relativos a pais que deixaram de pagar pensão de alimentos aos filhos, ou a pais que pedem para pagar menos ou para receber mais. E os números estão aí para o confirmar. A estatística do Ministério da Justiça mostra que o cenário se repete pelo país fora: 11.409 novos processos de incumprimento em 2010, 11.575 em 2011, 14.063 em 2012, e 13.095 só no primeiro trimestre do corrente ano de 2020 (fonte: DGPJ – Direção Geral da Política da Justiça, disponível in https://dgpj.justica.gov.pt/).
A subida do número de processos a envolver pessoas que falham a pensão de alimentos e que ficam sujeitas a penhora, é assim uma realidade que se vem afirmando ao longo dos últimos anos, com os tribunais de primeira instância a darem igualmente conta da evolução das ações executivas referentes a alimentos que vão concluindo, que das 767 ações executivas findas em 2007 ou das 817 em 2008, aumentaram exponencialmente para 1.568 em 2016, 1.573 em 2017 e 1.437 em 2018 (fonte cit.).
A insolvência ou o desemprego, a redução salarial, ou o aumento da carga fiscal, são geralmente os argumentos de quem desrespeita ou pretende alterar o acordado, ao que acrescem ainda os inúmeros casos de progenitores que se viram na contingência que ter que abandonar o país, deixando os filhos menores entregues à sua própria sorte. Atualmente há mesmo quem vá discutir a pensão de alimentos dos filhos com uma “folha de cálculo” na mão, discutindo (literalmente) ao cêntimo o custo do pão ou do iogurte que o seu filho menor tem que comer diariamente ao lanche.
Porém, não raras vezes são estratégias de quem tem que pagar as pensões que estão na origem do incumprimento, ou mesmo da incobrabilidade da própria pensão. Umas mais criativas que outras, mas há-as para todos os gostos. No limite, há mesmo relatos de quem prefira desempregar-se a ter que pagar. “Agora não ganho nada, não tenho dinheiro para dar”, é a narrativa muitas vezes ouvida nos corredores das conferências de pais por parte dos progenitores relapsos.
Nesses, como noutros casos de impossibilidade de cobrança das pensões ao progenitor faltoso, há porém um instrumento que se afigura da maior relevância, mas que por muitas vezes permanecer na penumbra, é um instrumento cuja utilização, talvez por isso, é muitas vezes negligenciada ou ignorada por quem pretende (e tem direito a) ver cobradas as pensões de alimentos: o “Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores”.
Criado na linha das Recomendações do Conselho da Europa de 4 de Fevereiro de 1982 (relativa à antecipação pelo Estado de prestações de alimentos devidos a menores) e de 18 de Janeiro de 1989 (relativa às obrigações do Estado, designadamente em matéria de prestações de alimentos a menores em caso de divórcio dos pais), bem como do estabelecido na Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, o aludido “Fundo” foi instituído entre nós através da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, com o fito de chamar o Estado a substituir o progenitor em falta em casos de pobreza extrema.
Assim, e ciente da expressa consagração constitucional do direito das crianças à proteção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral (artigo 69.º, n.º 1, CRP), o nosso legislador, desde 1998 a esta parte, passou assim a estabelecer na lei ordinária uma tutela especial no âmbito dos alimentos, traduzida na obrigação do referido “Fundo de Garantia” assegurar o pagamento das prestações de alimentos ao menor em substituição do pai/mãe faltoso(a). Como ressalta do próprio preâmbulo legislativo, “trata-se assim de uma prestação social e assistencial do Estado que traduz um avanço qualitativo inovador na política social desenvolvida pelo Estado com a função de assegurar o pagamento das prestações de alimentos [a menores] em caso de incumprimento da obrigação pelo respetivo devedor”.
Todavia, esse caminho não é isento de escolhos, na medida em que são vários e exigentes (porventura em demasia) os requisitos estabelecidos pela lei como condição de vinculação do dito “Fundo”. Pois que se é pacífico que a obrigação imposta ao “Fundo de Garantia” esteja dependente duma prévia condenação judicial do progenitor no pagamento das pensões de alimentos, do incumprimento dessa mesma condenação, ou do facto do menor e do seu legal representante serem residentes em território nacional (artigo 1.º/1, da Lei n.º 75/98), já no que respeita ao cumprimento dos demais pressupostos legais (também ali estabelecidos) os mesmos constituem muitas vezes um obstáculo absolutamente intransponível para quem pretende ver acionado o referido “Fundo”, com o objetivo de assim garantir a subsistência do menor.
E a razão é simples: é que para que o menor possa beneficiar do pagamento de alimentos através do referido “Fundo de Garantia” é ainda necessário, por um lado, que não seja possível o recurso à cobrança coerciva do montante em dívida nos termos e pelas formas previstas na lei (o que naturalmente pressupõe a prévia instauração duma ação executiva com vista a essa cobrança, através da dedução do valor da pensão de alimentos no salário ou noutras formas de rendimento do progenitor faltoso, nos termos do artigo 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível); depois, é ainda igualmente necessário que o menor não tenha rendimentos ilíquidos superiores ao Indexante de Apoios Sociais (IAS), nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre (o que naturalmente também impede o acesso a esse “Fundo” sempre que a capitação do respetivo agregado familiar seja superior àquele valor). Com efeito, só através da observância dessa dupla condição é que será possível chamar o “Fundo de Garantia” a substituir-se ao devedor faltoso, pagando, em detrimento deste, os alimentos em falta/dívida ao menor. E como facilmente se alcança, isso constitui muitas das vezes uma barreira de difícil ou mesmo impossível transposição no acesso às prestações desse “Fundo”.
Mas uma não menor dificuldade com que muitas vezes se deparam os progenitores com menores a seu cargo no acesso a este “Fundo”, reside no facto das prestações a pagar pelo “Fundo de Garantia” apenas poderem ser determinadas e fixadas pelo Tribunal, em incidente de incumprimento, o que implica que o Exercício das Responsabilidades Parentais do menor estejam já devidamente reguladas pelo Tribunal, e portanto, que esteja já decidido, através de sentença deste último, quem é o obrigado a cumprir com a prestação de alimentos fixada, e qual o valor da respetiva pensão.
Com efeito, se é compreensível que só o Tribunal esteja legitimado a determinar se o “Fundo de Garantia” deve ou não substituir-se ao progenitor faltoso, averiguando da observância (ou não) dos pressupostos de que depende a sua vinculação, já nos parece criticável a opção do legislador de fazer depender a convocação de tal “Fundo” do facto de já existir prévia Regulação das Responsabilidades Parentais do menor, sobretudo se pensarmos que é também (e até sobretudo) nos casos em que não existem Responsabilidades Parentais reguladas que muitas vezes se justifica (e até com mais acuidade) a intervenção de tal “Fundo”.
Tratando-se de uma prestação em dinheiro, tal prestação, quanto ao seu quantum, tem como teto máximo mensal, independentemente do número de filhos menores, o equivalente a um Indexante de Apoios Sociais (IAS). E, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 75/98, deverá ser fixado pelo Tribunal em função da capacidade económica do agregado, do montante da prestação de alimentos fixada, e das necessidades específicas do menor. Porém (e segundo o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STA n.º 5/2015, de 19 de Março) nunca “em montante superior ao da prestação de alimentos a que está vinculado o devedor originário” (o que, em nosso entender, também não está isento de críticas).
Por outro lado, e abrangendo este diploma apenas crianças ou jovens até aos 18 anos de idade, a regra geral é que o pagamento das prestações a que o Estado (através do dito “Fundo de Garantia”) se encontra obrigado cessa no dia em que o menor atinja a maioridade (artigo 1.º/2, da Lei n.º 75/98). Todavia, esta regra, que até 2017 não conhecia qualquer desvio, passou apos essa data a conhecer uma importante e relevante exceção, uma vez que, com a alteração que nessa altura foi introduzida pela Lei n.º 24/2017, de 24 de Maio, passou a ser possível estender o pagamento dessas prestações a filhos maiores, bastando, para tanto, que no momento em que o alimentado atinga a maioridade este ainda não tenha completado a sua formação escolar ou a sua formação profissional (artigo 1.º/2, in fine).
Nesses casos, a prestação que tiver sido fixada em seu benefício durante a menoridade mantém-se para depois da maioridade, até que o mesmo complete 25 anos de idade, e só assim não será se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido pelo próprio filho, ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência (artigo 1905.º/2, do Código Civil, ex vi artigo 1.º/2, da Lei n.º 75/98).
E portanto, como se deixou dito, não é de facto isento de espinhos o acesso ao “Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores”. De resto, poder-se-á mesmo dizer que esse caminho é até demasiado íngreme e estreito. Todavia, e enquanto prestador substitutivo de alimentos, o aludido “Fundo” não deixa ainda assim de constituir nos dias de hoje um importante mecanismo na salvaguarda dos superiores interesses dos menores, assim como na criação de condições para a sua efetiva integração na vida ativa, mesmo que, paradoxalmente, seja um instrumento que, ou por desconhecimento, ou por simples incúria, ainda hoje nem sempre é (como devia) devidamente “chamado à pedra” em substituição dos progenitores faltosos. E mais uma vez os números estão aí para o dizer. Com efeito, dados recentes indicam que todos os meses o Estado, através do “Fundo de Garantia”, assegura a mais de 20 mil crianças a prestação de alimentos, em substituição do devedor faltoso, num total de despesa que, só no ano de 2017, ascendeu a 31,3 milhões de euros (fonte: “Jornal de Notícias”, Ano 131, n.º 210, de 28 de Dezembro de 2018).
De resto, essa (a resignação) é uma tendência que é ainda mais acentuada no caso dos litígios transfronteiriços, ou seja, nos casos em que o progenitor faltoso se encontra a residir e a trabalhar fora do território nacional. Efetivamente, também aí (e aí até com mais frequência) são raras aquelas e aqueles que se movimentam e que o fazem trilhando o caminho certo. De facto, os dados mostram que o facto do devedor se encontrar a residir e a trabalhar “fora de portas” constitui na generalidade das vezes um fator desmotivador para os credores que têm menores a seu cargo, com estes a resignarem-se perante o incumprimento dos faltosos. Porém, também aí só o desconhecimento ou a simples inércia pode justificar tal inação. Já que, nesses casos e para ultrapassar as dificuldades inerentes ao facto dos alimentos terem que ser cobrados (coercivamente) no estrangeiro, a própria lei comunitária coloca hoje à disposição dos credores um mecanismo que lhes permite de forma simples, célere e totalmente gratuita, solicitar às autoridades centrais do seu país de origem que sirvam de intermediárias na cobrança dos alimentos em dívida, encarregando-se elas próprias de intentar no Estado-Membro onde reside o credor a respetiva execução por alimentos.
Estando previsto e disciplinado no Regulamento (CE) n.º 4/2009 de 18 de Dezembro de 2008, do Conselho, esse mecanismo (relativo ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares) confere assim ao progenitor que seja credor de alimentos a possibilidade de pedir ao tribunal do país da residência do devedor que aí execute e cobre as prestações de alimentos já anteriormente fixadas, sem ter que se deslocar ao país onde reside o devedor, ou onde os seus bens estão situados, e sem ter que ter aí Advogado constituído. E para isso apenas terá que fazer uma coisa: que requerer junto da Direção Geral da Administração da Justiça (DGAJ) – que é a autoridade central portuguesa para a cobrança de alimentos no estrangeiro – que remeta para o país da União onde reside o devedor, ou onde o mesmo possui bens, um pedido a solicitar que seja aí intentada a respetiva execução, cabendo depois à autoridade central desse país promover junto dos tribunais desse mesmo Estado os termos da competente execução por alimentos.
Esse pedido deverá ser feito através de formulário próprio, disponível no Portal Europeu da Justiça (https://e-justice.europa.eu/content_maintenance_obligations_forms-274-pt.do#action), e deverá ser instruído e remetido (em suporte físico ou via on-line) com um conjunto de documentos para a DGAJ, a quem caberá depois levar a efeito todas as diligências necessárias com vista à cobrança dos alimentos em dívida junto do país da residência do devedor.
Como se constata, trata-se assim de um mecanismo de cobrança coerciva de alimentos bastante simples, desburocratizado e totalmente gratuito, em que a DGAJ e a autoridade central estrangeira funcionam como entidades intermediárias que, para evitarem que o credor tenha de se deslocar ao país do devedor para aí intentar uma execução de alimentos, atuam em substituição e em representação deste, com toda a inerente poupança de tempo, custos e energias. Porém, os dados revelam que também aí o desconhecimento, ou a simples resignação, tem mais uma vez contribuído significativamente para a utilização residual deste mecanismo de cooperação judiciária.
Num tempo profundamente marcado pela recente pandemia, e pela crise social e económica sem precedentes que a mesma fez desaguar sobre as nossas vidas, as crianças não são seguramente a sua face mais visível. Porém, correm o risco de estar entre as suas maiores vítimas. Dados recentes da ONU revelam-nos que entre 42 a 66 milhões de crianças possam cair na pobreza extrema em resultado da crise deste ano, somando-se aos estimados 386 milhões de crianças que já estavam na pobreza extrema em 2019 (in “Impacto do COVID-19 nas Crianças”, UNICEF, Abril 2020). E nesse particular, Portugal também não ficará imune. Pelo que, num país em que o direito das crianças à proteção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral é constitucionalmente elevado a categoria de direito fundamental, naturalmente que o recurso aos referidos mecanismos de prestação e cobrança de alimentos não deixa de constituir um relevante e importante instrumento na prossecução desse objetivo, que é simultaneamente de todos nós.
Pedro Silva Dinis – Advogado e Docente Universitário