Hoje a chuva que se faz sentir leva consigo, Serra abaixo, as palavras de Helena Marques. Um livro pequeno, de leitura rápida, emotivo, denso, com vozes femininas marcantes, até as que se esperavam desinteressantes.
Helena Marques, que nos deixou recentemente, no dia 19, com 85 anos, foi jornalista e escritora. Nasceu no continente, mas as suas raízes madeirenses foram um dos traços marcantes da sua existência. O livro que hoje deixo, O Último Cais, de 1992, foi o seu primeiro romance, publicado quando a autora tinha já uma idade madura (57anos). Acredito que tenha sido uma ideia trabalhada durante muito tempo e por isso só posso dizer que tem semelhanças com um bom vinho, foi um amadurecimento elegante, refinado e o resultado uma delicia para os sentidos. Deliciem-se os amantes de palavras belas.
O Último Cais
“Olham-se comovidos, admirados e gratos. Em Raquel não existe lugar para interrogações. Paira num estado de graça desconhecido, apertada entre os braços de Marcos (…) “Que bom amor, que bom teres descoberto o prazer do teu corpo(…) Como é possível que eu, um médico, não te tenha ajudado melhor e mais cedo a chegar onde hoje chegaste? Tenho sido tão egoísta, amor, estás cansada, queres dormir agora, Raquel?” Raquel não quer dormir; (…)”
“As velhas meninas não têm idade. Pertencem àquele grupo anónimo, de muitos sorrisos e muitos suspiros, de algumas lágrimas também, àquele grupo definitivamente solitário, patético e marginal das mulheres sem marido.”
SINOPSE
A acção deste romance passa-se na ilha da Madeira, na segunda metade do século XIX. Era uma época de costumes rígidos em que se espera de cada um que se comporte exactamente de acordo com o modelo social. Todas as atitudes individuais seguem regras do conhecimento geral, onde não há lugar a surpresas nem livre arbítrio. Raquel e Marcos são um casal que vive à margem desses modelos sem, contudo, permitir que a sociedade os marginalize. Estão completamente integrados, vivem a vida, de forma apaixonada e intensa, e o fingimento de vida que as normas impõem com a fleuma necessária.
Marcos é médico num navio de guerra em regime de voluntariado. No final de cada comissão sente terríveis saudades da família, mas sabe que muito provavelmente voltará a partir, independentemente dos remorsos. Raquel é a jovem, bela e apaixonada mulher de Marcos que, contra todos os regulamentos sociais, não sente remorsos por amar e ser amada. Quando o seu marido regressa a partilha de ambos é total e a sua aura revela essa felicidade. Mas naturalmente esta felicidade resultou da procura de ambos, uma procura tenaz que deu os devidos frutos. A morte prematura de Raquel deixa órfãos os seus 3 filhos (morre de parto, ao dar à luz Clara) mas também o marido. O abandono que sente está mais perto da orfandade do que da viuvez.
Todas as personagens possuem uma força interior tremenda que se manifesta na forma como conduzem a sua vida e a dos que se encontram á sua volta. Em cada mulher existem características telúricas que lhe permitem ultrapassar as provações da vida de cabeça erguida e deixar marcas indeléveis em todos com quem interagem
A história é-nos contada por uma voz feminina a partir do século XX. A morte da primeira neta de Marcos, Carlota, faz chegar, por herança, o diário do velho marinheiro às mãos da narradora que nos leva até uma Ilha da Madeira Vitoriana numa viagem deslumbrante de sentimentos e emoções.
Boa semana com livros!