A diferença [rica] entre uma [simples] opinião e uma ideia, é que esta resulta de um itinerário de reflexão, tem a marca da pluralidade de sujeitos e desenha-se na abertura a outras [possíveis] ideias que completem a sua inevitável parcialidade carente. Esta semana, em Penacova, discutiu-se a ‘oportunidade’ da opção de colocar a cultura na agenda das obras estruturantes do Concelho.
Que existem outras prioridades. Que já temos equipamentos semelhantes sem aproveitamento. Que não teremos, num futuro imediato, destinatários. Que, no limite, a anunciada futura Casa das Artes terá dificuldades de sustentabilidade e não será rentável. De um lado, e em síntese. Que a comunidade já não terá de ir fora ‘consumir’ [o uso do termo é problemático e dava um texto] cultura. Que os nossos jovens não terão de ir a outros lugares ‘aprender arte’. Que as nossas associações passarão a ter uma ‘casa’ adequada à sua expressão artística. De outro, também em síntese.
Definir cultura é um exercício de demorada complexidade. Desde a sede da antropologia, de pendor evolucionista, Edward Tylor definiu-a, em finais do século XIX, como “aquele todo complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes, e qualquer outro hábito e capacidade adquirida do homem”. Aponta para a complexidade do todo. Neste também estão, nomeadamente, a economia e a política, que não são um simples ‘fazer’, nem um pensar que se esgote nas fórmulas de uma folha de excel. Para dar dois exemplos diminutos e parciais – e para falar daquilo que parece efetivamente alimentar as pessoas e gerar ‘riqueza’-, é uma opção ‘cultural’ desenhar um modelo económico centrado nas capacidades reguladoras da ‘mão invisível’ [Adam Smith] ou na abordagem das capabilities, segundo o modelo de Amartya Sen. Resultam em desenhos de sociedade diferentes, opções governativas gizadas à luz do Príncipe [de Maquiavel], com a perspetiva do temor a quem governa, ou do Leviatã [de Thomas Hobbes], onde “o homem é lobo do homem” e a organização social é vista como uma ‘concessão’ diante do temor da morte violenta. Não discorro estas referências para dar ares de eruditismo desencarnado, mas como alerta para sublinhar que o enfraquecimento cultural de uma comunidade a expõe a doutrinações manipuladoras servidas como verdade.
No começo do século XX, ainda na esfera da antropologia, mas como oposição a Tylor, Franz Boas grafa o termo cultura sempre no plural, sinalizando o elemento do multiculturalismo, anotando em simultâneo a particularidade de cada cultura, formada e transformada no dinamismo não uniforme nem linear da história. Boas alerta-nos para a situação relativista de cada tempo [do nosso!], acentuando a crítica à ideia de cada época se auto refletir como o fim da história. Na visão da sociologia, podemos afirmar que a cultura é um sistema, um conteúdo e um acontecimento social e que a comunidade no seu todo é o seu ator protagonista. Nesta aceção, sublinha-se a pluralidade de itinerários, de realizações, de espaços e de sujeitos. Pelo menos. Cultura emerge como contraponto [e complemento] de natura e apelo para a genética criadora de um ser humano não resignado ao determinismo [de si rico e misterioso] do simplesmente natural. Mulher e homem são também culturais ou não ‘se fazem’ como pessoas.
Na contenda em causa, isolo duas interrogações que me suscitam reservas. A primeira, mais estruturante, que o projeto seja apresentado aparentemente sem ‘programa’ e sem a referência a uma ‘curadoria’ profissional. Consta-se que a Casa albergará um espólio artístico e que receberá o nome de uma personalidade maior da pintura, mas parece-me uma comunicação com demasiado poucas ideias, além das que resultam do excel e da arquitetura. Infelizmente, não é caso virgem. A segunda inquietação, resulta da veiculada reflexão do ‘senso comum’ de que um espaço como o agora apresentado deverá ser pensado em função do acolhimento à associações culturais locais. Sendo justo e respeitável, parece-me estreiteza de horizontes. Se um investimento desta envergadura não se desenhar [também] com a perspetiva de propor um programa cultural em Penacova com o melhor do que se faz em Portugal, parece-me a acentuação de um provincianismo autista e empobrecedor.
A cultura é o alicerce estruturante da Humanidade. Não ter cidadania nos organigramas governativos, não ser ministério, não ser divisão autárquica, não ter uma ‘casa’ é muito mais que um preciosismo linguístico. É uma opção cultural. Pobre, mas uma opção. Não se discute que todos queremos emprego, saúde, educação, transportes, habitação, saneamento, alimentação… Mas a cultura não é concorrente de nada disto. É, antes, o seu pressuposto. Uma comunidade culta terá incomensuravelmente mais ferramentas para atingir aquelas e outras finalidades tidas por mais imediatamente necessárias. Pode demorar eventualmente mais tempo, mas a solução encontrada terá outro chão, um cimento maior e uma validade de tendência vitalícia. O contrário disto costuma ser a casuística do ‘achanatamento’ ocasional, do ‘empurrar com a barriga’ sem estratégia, da resolução ao sabor das conveniências do momento, que admitem tudo e o seu contrário.
Gostaria de viver numa terra com a curiosidade intelectual aguçada, com capacidade de espanto, com desejo da radicalidade das perguntas, com sede de novidade, com fome de aprofundamento, com espaços de discussão inteligente, que fosse regaço e ninho de diversidades. A cultura é a estrada que aí leva.
Gostaria de viver numa terra alimentada pela harmonia polifónica do som, pela beleza do silêncio onde cada um se encontra consigo, pela experiência criativa que é gestação de beleza, pela narrativa contada e escrita, por palcos de enredos espelhadores do sentido da condição humana e do cosmos, pela genialidade do solo e pela magnificência da orquestra, pelo ensaiado improviso. A cultura inventou e reinventa tudo isto.
Não gostaria de viver numa terra domesticável, resignada ao arrebanhamento e à transumância alienantes, de identidade e auto estima enfraquecidas, sem memória e sem esperança, com vizinhança sem fraternidade, com autoritarismo de simples genética ou coloração, mas sim num território geográfico e vivido com rebeldia competente [Boaventura Sousa Santos] e crítica. A cultura interdita os primeiros e alimenta o último.
Em conclusão, irrita-me que a cultura se menorize por questões financeiras, porque essa atitude é invariavelmente uma opção deliberada, sustentada no medo que o poder tem do contraditório fundamentado e na impossibilidade de mensuração imediata e com retorno dos frutos de uma estratégia cultural. A longo prazo, até me atrevia a dizer que só a cultura dá lucro, numa aceção ampla e humana do termo. Por fim, subscrevo o ‘contentor’ do projeto anunciado como Casa das Artes, por razões de estruturação civilizacional, mas desafio a que se pense o seu conteúdo.
Luís Francisco Cordeiro Marques