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Pese as adjacências inestéticas, como as publicidades e as placas informativas visualmente ‘ruidosas’ ou a digna nobreza de uma entrada de vila que teima em permanecer promessa adiada, escrevo hoje ‘a partir’ de S. Pedro de Alva, sublinhando o facto – relevante nestes dias – de ser uma terra com o cemitério como ‘pórtico de entrada’. Significa isto que entramos e saímos envolvidos por um gigantesco, lancinante, misterioso e permanente ponto de interrogação silencioso. Condená-lo ao escondimento, só por ser irrespondível ou porque pensamos que ignorá-lo contribui para que se mantenha longe, não é saudável. Experimentá-lo como guilhotina vorazmente apontada ao nosso pescoço, equivale a celebrar as exéquias fúnebres antecipadamente, esquecendo a antecâmara maior que é viver. ‘O que andamos a fazer no mundo’, é a questão que emana daquele espaço e de todos os similares. A pergunta sobre o sentido da vida não é mais uma questão, entre as que povoam sondagens, inquéritos ou debates. É A QUESTÃO! Porque razão suficientemente argumentada havemos de vir ao mundo fazer algo, se, inevitavelmente, iremos todos morrer? O que vale este ‘jogo’ da existência com validade tão curta e, não raro, contrariedades tão dolorosas? Como lidar, de modo não esquizofrénico, com esta condição tão paradoxal de ser e carregar esta possibilidade de deixar de ser, que se pode confirmar a qualquer instante e que, um dia, de facto se confirmará? Mais do que casuística opinativa circunstancial, relacionada com permissões e proibições decretáveis ou não, a sensibilidade fina do tema nasce do facto de tocar questões transversalmente partilhadas pela Humanidade inteira. Por isso, mais do que burocracia regulamentar ou técnica, deve reclamar-se dos políticos estudo, intuição e arte.

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O alemão Martin Heidegger [1889-1976], a grande inteligência filosófica do século XX, no magistral livro ‘Ser e Tempo’ [1927], reflete a pessoa como ser-para-a-morte. Para ele, viver equivale a [saber] lidar com a mortalidade que nos constitui, dado que estamos permanentemente a morrer. A morte, na analítica existencial ‘heideggeriana’, é a única possibilidade que nos é própria, no sentido de ser a única dimensão do nosso ser que jamais conseguiremos alienar. A pessoa pode ‘vender-se’, mas a sua morte é intransmissível. Podemos morrer por alguém, mas a morte desse alguém é sempre vivida por ele. Numa síntese superficial, convirá ainda lembrar que o humano, em Heidegger, nunca é uma ‘tese teórica’, mas sempre um ser concreto, ‘lançado’ como presença numa existência que é também ela concreta.

‘Ser para ser vida para sempre’ ou ‘ser para ser nada para sempre’, para citar os dois caminhos mais comuns de ensaio de resposta à questão da morte, do quadro das crenças e das não crenças, são duas eternidades avessas, que não nos livram da angústia das perguntas, que acompanham o nosso itinerário histórico. Confortam mais ou menos quem fica. Dão mais ou menos sentido às vidas. Mas só! E não é pouco! E a interrogação maior não estará tanto na morte, mas na ‘não vida’, num morrer [ir morrendo] insuficientemente vivido. Este será o único problema real da vida! A má morte, que existe de facto, decorre de um mau morrer. Que equivale a um viver desumano. Por isso, dignificar a morte – uma urgência pensada hoje com várias perversidades! – é um indicador civilizacional de um tempo que quer dignificar a vida. Não creio que seja um pormenor e sem este chão não há pessoa nem sociedade. A agenda destes dias deveria ter este imperativo de refletir o que os decretos não comportam, mesmo se nem todas as suas omissões são inocentes. No fundo, o modo como tratamos os mortos – frio, formal, burocratizado. – é o espelho da forma como vamos morrendo, que equivale a ir vivendo. Mais do que nostalgia, saudade e memória, além da perpetuação positiva das relações históricas que a morte quebrou, este tem de ser o tempo não deixar ninguém morrer mal, de educar para morrer bem, de atenuar as feridas dos lutos difíceis, de colocar estas questões na agenda política para serem enfrentadas com arte criativa e com a criatividade da arte.

Falando de educação, sublinho sobretudo as escolas e as famílias como atores nucleares. Discussões sobre matérias de cidadania à parte, os currículos, que têm na letra a autonomia e o incremento da flexibilização e do enraizamento cultural, não podem iludir a morte como A questão da condição humana, remetendo-a ao silêncio, descurando a inteireza da pessoa e as [de]formações a que ela está exposta a partir de outras cátedras com pretensões formativas. No quadro familiar, há que estudar a proporcionalidade da informação, a adequação ‘desinfantilizante’ dos eufemismos e a assunção da ‘negatividade’ como parte da existência humana, em reação à ditadura escravizante do sucesso.

Na esfera política, há que, primeiramente, dar cidadania a estas questões e não as resumir a um simples dinamismo de reação ocasional, sobretudo diante de catástrofes. Ao exercício político exige-se projeto e proatividade. É isso que cria senso comum e forma a mentalidade cultural da comunidade. Nesse sentido, a morte tem de deixar de ser pensada como uma realidade apenas egocentrada [da intimidade da pessoa/família] e coisificada [um acontecimento, entre outros], para se inserir no processo vital permanente. A morte individual é parte das mortes universais e tem que ver com as mortes que permanentemente se vão verificando em cada um de nós. Uma consequência daquela mentalidade ‘filosófica’ vigente, por exemplo e para ser concreto, é uma resposta social ao envelhecimento [quase exclusivamente] focada em tentar adiar a morte daqueles que a ela parecem estar [mais] condenados.

No campo da saúde, considero ser imperioso, particularmente num território com as caraterísticas etárias do nosso, colocar os lutos nos projetos e nas práticas de intervenção. Se é certo que a maioria das pessoas supera satisfatoriamente esses momentos inevitáveis, é igualmente factual que olhar esta dimensão da vida com uma naturalidade superficial semeia sequelas incapacitantes e nem sempre visíveis.

Vamos, enfim, morrer! É a notícia que ninguém quer dar sobre os seus e que quer adiar o momento de alguém a dar sobre si. Quando estamos em causa nós ou os nossos, a reflexão fica titubeante, silenciosa e com reduzida clarividência. É por isso que faz sentido pensar antes. Assumindo o mau perder sobre o assunto, mas equilibrando a angústia e a indiferença sobre o tema, uma atrofiante e outra mentirosa.

Luís Francisco Cordeiro Marques

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