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As palavras estão entre as coisas com ‘má reputação’. Não sei se por isso, aprecio-as particularmente! Agrada-me o seu sabor, a sua musicalidade, o rasto que subsiste à sua passagem. Não raro, denegrimos o verbo de alguém, reduzindo-o a ‘palavreado’. Ou acentuamos a débil propensão para a ação, recordando que ‘palavras leva-as o vento’. Algures fazemos notar que são ‘só palavras’ os raciocínios que alguém encadeia e parecem difíceis de concretizar. Na prática, há aqui [no meu caso, pelo menos] alguma vontade secreta de ter querido algures escrever aquilo que critico, até porque, em regra, nada sei da capacidade fazedora dos escribas que leio. Reparemos que é com palavras, que tentamos esvaziar as palavras alheias, argumentando que são ‘só isso’. Os de pensamento mais ‘tecnocrata’, em nome da exatidão idealizada, proclamam que ‘letras são tretas’. Por fim, os moralizantes, decretam que ‘já não há palavras de honra’.

Valem, de valor e de peso, as ‘folhas de Excel’, os exames, os diagnósticos, os indicadores quantitativos. Em nome do paradigma dominante da [pretensa] exatidão e do rigor, facilitando o escrutínio e sossegando o pavor de falhar. No limite, o movimento tolhe-se, porque os números assim o dizem. Não sugerem apenas, dizem de facto. Logo, assim se faz. Ou não se faz, caso os números secundem esta segunda opção.

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Acredito que pensar é já fazer! E a verdade crua e razoável é que ninguém poderá nunca fazer tudo. Custa-nos perceber que vivemos num intervalo de tempo, entre um ‘antes de nós’ e um ‘depois de nós’. Antes está uma história densa e imensa de um mundo que se foi fazendo e dizendo de muitos modos. Sem nós! Depois estará ainda mais densidade e imensidão para se distender no tempo. Novamente sem nós! Por razões de economia [em sentido forte, lei da casa], nenhum de nós poderá fazer tudo. E certamente que pensaremos mais que o que faremos de facto. Fazer será sempre uma escolha. Tripla, não dupla. Escolhe-se o escolhido. Não se escolhe o não escolhido. Escolhe-se deixar latentes planos B, para um eventual reaproveitamento em função das circunstâncias, que fogem ao nosso controlo ou que se impõem como surpresa ou inevitabilidade.

Repetidas vezes se renuncia às palavras e ao pensamento, em nome de um ativismo sem fundamentação teórica, em nome de uma razoabilidade financeira, em função da reação ao imperativa ao imprevisto. Contundo, dizer razoabilidade é dizer que não é contraditório com a razão e não apenas que está em conformidade com o bolso. Esta pode estar garantida e aquela não. No limite, comanda o dinheiro e o investimento naquilo que possibilita uma ‘placa comemorativa’. ‘Deixar obra’ é fazer isso! Super estrutura, de deficiente infra estrutura. Vale a pena recuar ao eco da antiga sabedoria, de fazer ‘por palavras e obras’. Ou à ideia que defende que a palavra está no princípio e que cria. Não esqueçamos que, significativamente, as palavras aparecem em segundo lugar na tetralogia dos ‘pecados’ [pensamentos-palavras-atos-omissões]!

Para que servem, então, as palavras?

No limite, para tudo! Aliás, já é sintomático que se pergunte ‘para que serve’, como se ‘servir para alguma coisa’ fosse o critério de qualidade do que é realmente importante! As palavras capacitam as pessoas, confiando-lhes os protagonismos da sua vida pessoal, crendo e querendo que desta forma se dinamize a sociedade. Demora, desilude, frustra. Nenhum receituário conseguirá garantir o sucesso ou medir os resultados. Mas transformaremos os destinatários em protagonistas e ganharemos os necessários agentes da imperativa mudança. Errarão, discordaremos, talvez nos traiam, não veremos o resultado… Valerá o risco, sobretudo se a outra opção for ter diante de nós ‘soldadinhos de chumbo’ laudatórios, que nos massajam ocasionalmente o ego e curvam a cabeça à nossa passagem.  Para e por coisa nenhuma. Por medo que o súbdito ultrapasse o rei ou o discípulo o mestre, escolhemos vezes demais o fazer visível e mensurável, em desprimor deste outro dinamismo da palavra capacitante. Mas as palavras são performativas, ‘fazem’ coisas.

Arfar por um receituário é uma das identidades da minha contemporaneidade alternada ou simultaneamente cansada e preguiçosa. Este é um raciocínio assumidamente [auto]inclusivo. Reflete a deficiente relação com o tempo. Antes, queríamos pará-lo, em razão, nomeadamente, do retardamento do envelhecimento indesejado. Agora, lidamos mal com ele, quando nos parece parado. Habituámo-nos ao tempo cronológico, sucessivo, rápido e voraz, que não nos deixa espaço e tempo para o saber e o sabor. Estamos a habituar-nos, os não nativos, ao tempo digital, que oferece a experiência da simultaneidade e, não tarda em definitivo, a da imersão na realidade, dispensando todas as mediações. É de uma revolução concetual que se trata, que atinge o núcleo disso que seja a essência humana. Ainda e sempre, no entanto, é de comunicação que se trata. Estou convencido que muito do equívoco, da contradição e da violência atualmente gerados, em contexto pandémico, tem que ver com incapacidade comunicativa.

Lamento, mas não basta um dispositivo informático e uma página numa rede social como ‘entretém’ desgovernado ou governado por uma agenda escondida. É infra humano, por exemplo, mastigar-até-ao-empanturramento as mortes apenas como números, porque elas são sempre concretas, ausências não reponíveis de e para alguém. Falam sempre, no limite, da minha morte. São, na raiz e no horizonte, sempre parte das mortes coletivas que são um processo permanente. Desce-se um patamar intelectual quando manipulamos os números, em função da ideologia, recuando os anos que dá jeito para a estatística, apresentando só os números ‘fofinhos’ ou debitando realismo a conta gotas, para que se perca a perspetiva do conjunto. Sou dos que defende que é possível transferir, nomeadamente para as redes sociais, aquele nível de argumentação própria da mesa-de-minis-e-tremoços, mas sobretudo para que se perceba o que não deve ser levado a sério. É sempre bom identificar onde mora a imbecilidade, para poder fugir dela. Mas, se falha o bom senso, se a regulação seria limitação da liberdade de expressão como direito fundamental, terá de haver alguma educação comunicacional e disputa argumentativa, para que, de repente, não se institucionalize a ignorância. Demora, mas, um dia, valerá a pena. Filtrar o ruído do caudal palavroso contemporâneo e educar para a pedagogia do debate inteligente e sério é um imperativo civilizacional. Porque, para o bem e menos bem, as palavras fazem mesmo coisas.

Luís Francisco Cordeiro Marques – Chefe de Redação

 

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