Nos EUA ainda houve cerca de 70 milhões de cidadãos a votar em Donald Trump. Apesar da derrota, teve mais 10 milhões de votos que em 2016. Traduzido: quase 50 por cento do eleitorado quer ter como líder do país um Presidente nacionalista, apocalíptico, racista, homofóbico, despótico e reaccionário. E não é por ter perdido que o Trumpismo acabou.
Existem marcos histórico-estruturais que ajudam a explicar este fenómeno: o país surgiu da conquista de um extenso território, extermínio do povo nativo e da escravatura de negros africanos, memórias muito presentes, pois são, ainda, recentes. É um país jovem, com menos de 300 anos, cuja identidade se formou na ética protestante e no espírito do capitalismo.
Trump exalta essas referências e renova o sonho americano explicado com simplicidade no slogan “make America great again” (tornar a América novamente grande) da eleição de 2016, que passou nesta eleição a “keep America great” (manter a América grande). Dirige-se aos indivíduos, glorificando-os (“és o maior”, “és poderoso”) e reforça desconfiança e teorias da conspiração, minando ideais de solidariedade social e de partilha (“os vencedores” versus “os falhados”).
Por outro lado, as políticas democratas diminuíram a confiança das pessoas, que votaram em Trump. A crise financeira deflagrada em 2008 com os bancos a serem salvos e as pessoas deixadas no desemprego e na angústia de se perceberem como bens descartáveis. A velocidade com que nas redes sociais – controladas por multinacionais poderosas e por um modelo de negócios assente no controlo e vigilância – se propaga ódio, irracionalidade, descrédito, culto das armas e da violência, e diabolização do outro.
Desacreditadas com a política e com os políticos, as pessoas encontraram em Trump a alternativa credível, surgindo como o homem providencial e capaz de construir muros e limites. De pôr o país na ordem!
E era quase provável nova vitória, depois de quatro anos de governação, pois a economia vinha a melhorar, ao que não seria alheio o aumento exponencial da venda de armas ao Médio Oriente. Quase provável. Até que um microscópico coronavírus abalou o mundo e a confiança dos norte-americanos no Presidente, que comprometeu a reeleição com o seu comportamento durante a crise pública de saúde e económica.
Trump não aceita a derrota, logo aí se vê o nível de democrata que é, tudo faz para que a democracia não funcione, utilizando expediente meramente dilatório, para deslegitimar à força o acto eleitoral e dificultar ao máximo a contagem dos votos. As acções que têm dado entrado têm sido inconsequentes. Fogo de vista. Joe Biden é o próximo Presidente dos Estados Unidos da América.
Em democracia todas as posições são admissíveis desde que sejam difundidas de forma socialmente adequada. Contudo, há posições que não são admissíveis porque estão claramente contra o Estado de Direito e a Constituição e, em última análise, tendo em conta as posições que defendem, se as pusessem em execução acabariam certamente com a própria democracia.
Fervoroso defensor de Trump e das suas políticas, no Brasil, Jair Bolsonoro não reconhece a vitória de Biden e quando o ainda candidato do Partido Democrata alertou para a destruição da Amazónia, o presidente brasileiro não aceitou e fez saber “quando acabar a saliva, tem que ter pólvora”.
Cá chegados, a saliva não falta e o fenómeno cresce publicamente, ligado aos movimentos skinhead e de extrema-direita, como os associados ao MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal), com dirigentes e apoiantes ricos e ultraconservadores, alguns dos quais elementos/ex-directores do universo BES/GES e outras personalidades que estiveram envolvidas nas maiores fraudes bancárias ocorridas em Portugal e depois de Alves dos Reis, só que este foi preso.
E a tudo isto se soma o oportunismo visível na ligação às Igrejas, não só à Católica, mas sobretudo às Evangélicas (e à semelhança de Bolsonaro e de Trump), as quais buscam afincadamente o poder político e social. Os líderes dessas igrejas não apenas financiam actividades partidárias, como também promovem os elogios públicos aos dirigentes políticos que apoiam.
Tendo em conta os apoiantes e os financiadores são previsíveis os objectivos, verificando-se que, com poderosas meios de comunicação digitais e apoio dos sectores mais reaccionários da sociedade, fazem constantes apelos aos sentimentos mais primários das pessoas. Desenvolvem um discurso sistemático ao ódio e ao ataque pessoal, à xenofobia e racismo, à discriminação e perseguição do diferente, seja na política, na cultura, na raça ou orientação sexual, defendendo o desmantelamento do Estado Social e o desprezo pela Constituição.
Constituem um perigo para a Democracia, pois ainda que tenham pouca representividade, são necessários para outros ascenderem ao poder, sendo certo que não estão mais nos bastidores, saíram já para o palco, e os nossos políticos são mais dados a oportunidades do que princípios, logo, e havendo oportunidade de chegar ao poder, os princípios ficam para depois.
Desta forma, esses democratas mostram-se afinal tão maus, tão corruptos e tão autoritários – ou até mesmo piores – quanto aqueles que eles dizem criticar e combater. A maioria dos cidadãos anónimos e comuns que defendem fervorosamente estes elementos, caso os mesmos venham a ascender ao poder, serão os mais prejudicados pela sua actuação politica.
Temos de dizer não à violação de Direitos Humanos. Não ao desprezo pelo Estado de Direito. Não à política feita por via do ódio e do insulto pessoal.
Carl Sagan, in O Mundo Infestado de Demónios, alertou: “Se formos enganados durante muito tempo, temos tendência a rejeitar qualquer prova de fraude. Deixamos de estar interessados em descobrir a verdade. A fraude apanhou-nos. É demasiado doloroso reconhecer, nem que seja para nós mesmos, que fomos levados à certa. Uma vez que damos a um charlatão poder sobre nós mesmos, quase nunca o recuperamos. Por conseguinte, as velhas fraudes têm tendência a persistir, ao mesmo tempo que surgem outras novas”.
Marília Alves
Excelente artigo de opinião, cara Marília! Preciso, conciso e oportuno! Parabéns!