Publicidade

Um Mundo encurtado como o nosso, com a mobilidade democratizada, é um lugar sem distâncias. Há um imperativo ético inequívoco a decorrer daqui que tem de se traduzir num paradigma de proximidade fraterna. O alicerce humano do cuidado com os outros assenta neste chão. Não se confina a uma ‘solidariedade simpática’, mas precisa de se deixar desafiar pela ‘fraternidade empática’. No mundo sem longe, a ética do cuidado não se vive na justaposição ocasional, mas no entrelaçamento. Trata-se de um necessário acordo global cósmico, mas de uma emergência local. Na prática, antes do decreto, utópico talvez – mas como seria vida sem esse sonho de ‘um outro lugar’? –, tem de vir o cimento possível da existência. Mesmo que na verdade não seja assim. Todos começamos pela possibilidade e dela caminhamos para encarnação na realidade, sempre mais estreita. Regressando ao concreto, tudo estar ao alcance dos nossos passos ou do som da nossa voz, tem de ser a nossa ‘tecnologia’ mais fundante.

‘Quem é o teu próximo’ é uma pergunta civilizacional, que nos atira o nosso lugar e para as pessoas concretas que o compõem. Se o dinamismo da história nos convoca para a proximidade, derrubando fronteiras albergando-nos sob o manto do comum e sintetizando a nossa porção de vida num Todo maior e amplo, daqui teriam de decorrer algumas consequências. Desde logo, desalinhar desobedientemente dos construtores de muros. Dos [in]culturais, porque os ‘físicos’, esses são mesmo patologia insanável. E, depois, manter o discernimento crítico com as ‘pontes’ impingidas com ‘portagens exorbitantes’, que nos confinam numa margem assimétrica para pior. Finalmente, exercitar a emancipação pela inteligência rebelde e resiliente, diante do vendido como inevitável, que apenas deixa espaço para a resignação. E, eventualmente, ir ‘à vida’ depois de tentar, mesmo sem certezas de encontrar melhor. Antes disto, ‘alguma coisa’ acontecerá, porque a estagnação na história é sempre uma ilusão de ótica.

Publicidade

Na pequena localidade, por maioria de razão, a proximidade não tem alternativa. Podemos não ter um inesgotável celeiro de recursos ou os meios mais sofisticados e capazes. Mas TEMO-NOS, num nível de confiança e de relação que só pode ser bem capitalizado. Portanto, não cabem as dramatizações de complexos traumatizados de grandeza, onde é ‘de bom tom’ ter agenda cheia e fazer esperar ou possuir na antecâmara da vida ‘acessorias’ que confundem agilidade com inacessibilidade. A ‘solução’ está sempre na ‘porta ao lado’ ou no ‘lado contrário da rua’, num caminho curto, mas que, ainda assim, precisa de ser percorrido. Não o percorrer, optando pela expiação das dificuldades num muro de lamentações imaginário ou pelo arremesso de ‘culpas’ para trincheiras alheias, muitas vezes anónimas e anonimamente, é um exercício descaracterizador da natureza dos lugares e das pessoas.

A comunicação próxima e rápida não é, no pequeno território, um acessório de simpatia, mas uma identidade. O inverso é que é descontextualizado. Não entender existencialmente isto, enreda a vida pública em narrativas vãs, que acentuam a fulanização das dificuldades, minam a coesão social e hipotecam o futuro. Aqui chegados, pensamos o futuro a partir dos índices de ‘porreirismo’ e das estatísticas de ‘popularidade’. Como esta mensurabilidade é imprecisa e difícil e não há propriamente perspetivas que se distingam ideologicamente, concentramo-nos na denúncia dos erros alheios, arremessados como argumentos a nosso favor. No final, contabiliza-se quem melhor protagonizou esta ‘guerra’, mesmo que ela seja somente um produto gerado para consumo ocasional e em fóruns próprios e restritos. Erguem-se, assim, muros na proximidade, em razão de uma dramatização cénica, que nem sequer consegue distinguir a qualidade dos protagonistas, mas se centra unicamente na sua ‘performance’. É preciso romper com este paradigma, estimulando um contraditório inteligente, permanente e consequente. Desamestrado e desamestrável.

Não cabem, na proximidade territorial, os exercícios de competitividade hostil entre os agentes mais protagonistas da sociedade civil, mais espontânea ou mais organizada. Os destinatários que constituem o ‘público consumidor’ da nossa produtividade têm um limite ‘curto’. Temos apostado tudo no turismo, que no nosso território é mais excursionismo [momentâneo] e ‘nada’ na atração de população. Logo, o quotidiano da existência é feito por nós, para nós. Somos produtores e consumidores. O contrário parece ilusório. Assim, ‘atropela-se’ frequentemente a economia, a solidariedade, o desporto, a música e a cultura em geral… Por três ordens de razões. Porque temos um quintal, e vivemos traumatizados porque queríamos uma quinta. Porque, ainda assim, fazemos dos ‘marcos divisórios’ a luta mais presente nas nossas vidas. E, eventualmente, porque vivemos alimentados pela ideia de copiar e suplantar a concorrência e não de convergir num bem maior e melhor para todos, de modo consistente e distendido no tempo. Proximidade desaproveitada, uma vez mais. É de um plano estratégico, que redesenhe transversalmente o território [geográfico, cultural e humano], mobilizador da sociedade civil e pensado a 20 anos que carecemos. De contrário, vamos gerindo o prejuízo, com laivos ocasionais e desgarrados de criatividade, polvilhados com vitórias parciais e morais.

O síndrome da burocratização, a ‘pequenez’ das ‘importâncias’, a fragilidade de uma ‘aristocracia’ construída em ‘terra de cegos’ escurecem as origens. Nem precisamos da regressão às origens ancestrais, basta apenas a história que a nossa memória alcança e que nos transporta aos mesmos bancos de escola, aos pontapés na mesma bola e aos primeiros ensaios de adultez emancipada. Esquecer que somos pequenos e próximos é o primeiro passo para retardar o nosso crescimento. O desígnio de unidade, como diálogo de diferenças e de diferentes, é um imperativo dos tempos, superior a todo o tipo de credos. A pequenez e a proximidade, assumidas sem trauma, a par com uma inteligente abertura [cultural, antes de mais] ao Mundo serão essa alavanca consistente. Sem isso, vamos entreter[-nos] a ‘brincar’ aos ‘crescidos’.

Luís Francisco Cordeiro Marques

Publicidade

Artigo anteriorSaúde: A importância da higiene do sono em tempos de pandemia
Próximo artigoLuto nacional pela morte de Eduardo Lourenço

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui