Quem há muitos anos anda na vida política e partidária será certamente testemunha que, nos últimos anos, sobretudo nos meios mais interiorizados e, por isso, mais depauperados de gente e de recursos, a tarefa das estruturas partidárias de seduzir pessoas para encabeçar projetos autárquicos ao nível das Freguesias é uma tarefa cada vez mais arqueológica. As responsabilidades legais inerentes ao cargo são muitas, o retorno financeiro é quase inexistente, os recursos são escassos, e a sede da Junta é muitas das vezes a porta da própria casa. Como é recorrente ouvir-se dizer, “para ser Presidente de Junta é preciso gostar”, pois, reflexo de um poder que é “tu cá, tu lá”, os Presidentes de Junta têm, no fundo, que ser “pau para toda a obra”. Uma “obra” para a qual são cada vez mais escassos os protagonistas disponíveis.
E nesse contexto, o Acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA) publicado no passado dia 05 de Março (Acórdão n.º 2/2020, de 12/12/2019) não veio constituir seguramente nenhuma ajuda nessa já de si difícil tarefa, sabendo-se, como se sabe, que na generalidade das vezes são pessoas com vida empresarial própria aquelas que se mostram mais disponíveis para despender tempo, meios e recursos em prol das suas populações, encabeçando projetos autárquicos de Freguesia.
Surgido no seguimento de dois Acórdãos com decisões diametralmente opostas, aquele Acórdão uniformizador veio resolver definitivamente a vexatio questio de saber se as Câmaras Municipais estão ou não impedidas de celebrar contratos com empresas de um Presidente de Junta do mesmo Município que, por inerência, seja também membro da respetiva Assembleia Municipal, questão que de resto sempre se colocou (e coloca) em face do impedimento estatuído no artigo 4.º, alínea b) v), do Estatuto dos Eleitos Locais (EEL), que, relativamente aos “Deveres dos eleitos locais”, prescreve que estes “No exercício das suas funções (…) estão vinculados ao cumprimento dos seguintes princípios: Em matéria de prossecução do interesse público: não celebrar com a autarquia qualquer contrato, salvo de adesão”.
A questão é de grande acuidade e relevância jurídica. Porém, é também profundamente relevante e impactante do ponto de vista político, já que, aquilo que no fundo está em causa, é afinal saber quais são os direitos e deveres de qualquer cidadão, com vida empresarial própria, na hora em que tiver que tomar a decisão de concorrer (ou não) a eleição autárquica para governo da sua Freguesia. Todavia, e até pela necessidade que houve desta questão vir ser definitivamente uniformizada pelo STA, percebe-se que esta questão foi também matéria que nunca foi pacífica ao longo dos anos, com alguns dos nossos Tribunais a responderem afirmativamente àquela questão, e outros a fazerem-no pela negativa.
Com efeito, enquanto que para os primeiros a verificação do impedimento em causa (previsto no aludido artigo 4.º) deve operar sem mais, e portanto, não está dependente da ocorrência de uma concreta atuação parcial por parte do eleito local; já para os defensores da tese contrária, esse impedimento só deverá operar quando se prove que houve por parte do eleito local uma concreta atuação parcial, isto é, quando se demonstre que o autarca, pelo facto de integrar simultaneamente um órgão do Município (dono da obra) e a posição de proprietário e gerente de dada sociedade empreiteira (adjudicatária), influenciou, em seu próprio benefício, ou em benefício de terceiros, a celebração do contrato de empreitada com o Município.
E portanto, como se percebe, tem sido de facto profundamente divergente (e conduzido a soluções diversas) a interpretação que tem sido dada pelos nossos Tribunais Administrativos ao referido impedimento legal, considerando a razão de ser onde o aludido impedimento radica, que é o de assegurar a imparcialidade da Administração, arvorada esta como princípio constitucional (artigo 266.º/2 CRP) e legal (artigo 9.º CPA). Com uns a defenderem a tese de que aquela “imparcialidade” só será posta em causa quando se prove que houve uma concreta atuação parcial por parte do eleito local, e portanto, a exigirem essa prova para tal impedimento poder operar; e outros a colocarem o acento tónico na ideia de que aquele predicado só será devidamente salvaguardado se o eleito local não puder simplesmente celebrar com o Município quaisquer contratos em que intervenha a empresa de que é sócio e/ou gerente, e portanto, a sufragarem a ideia de que a infração daquele impedimento legal se basta com a verificação de situação de mero perigo.
Com a prolação do referido Acórdão uniformizador, o STA veio por definitivamente termo a essa divergência. E tendo-o feito através da adesão a esta última interpretação, desde o passado dia 05 de Março de 2020 a esta parte que, aqueles que sejam simultaneamente Presidentes de Junta de Freguesia e sócios e/ou gerentes de dada sociedade comercial empreiteira, passaram a estar simplesmente impedidos de poder celebrar quaisquer contratos de empreitada entre aquela sociedade e o respetivo Município. E isto pelo simples facto de serem (por inerência) também membros da respetiva Assembleia Municipal, e portanto, por haver, mesmo que de forma meramente abstrata, o risco do eleito local poder fazer uso dos poderes inerentes às suas funções autárquicas para favorecer interesses particulares (próprios ou alheios) em detrimento do interesse público.
Ou seja, como se sublinha no aludido Acórdão, sendo o fundamento do impedimento em causa a a vinculação do eleito à prossecução do interesse público, a sua finalidade não é outra senão assegurar a imparcialidade, a isenção e a transparência no exercício das funções autárquicas. E isso naturalmente que convive mal com a exigência de demonstração de uma concreta atuação parcial por parte do eleito local para que se verifique o impedimento em causa. Pelo que, a melhor forma de prevenir o conflito de interesses que a norma em causa visa acautelar, será empreender no sentido de evitar o surgimento do interesse (particular) cuja satisfação potencial ou efetiva prejudica ou sacrifica o interesse contraposto (público). E isso impõe que se confira ao impedimento em apreço uma operatividade que o torne aplicável tanto em casos de verificação efetiva/real de conflitos, como em casos de conflito meramente potencial, operando o mesmo de forma antecipada em relação ao possível surgimento desses conflitos.
O que na prática equivale por dizer que, para que o aludido impedimento opere, não será agora definitivamente necessário demonstrar a real possibilidade do autarca influenciar a celebração do contrato de empreitada com o Município. Para tanto, basta que, pelo facto de integrar simultaneamente um órgão do Município dono da obra e a posição de proprietário e gerente da sociedade empreiteira, não lhe possa ser atribuído o estatuto de “desinteressado”. A não atribuição desse estatuto será labéu de desconfiança na sua imparcialidade e isenção relativamente à celebração do contrato de empreitada. E isso será agora o bastante para que se verifique o impedimento em causa.
Quanto à eficácia deste posicionamento jurisprudencial, o futuro encarregar-se-á de aferir do seu acerto. Porém, o impacto que esta decisão terá no imediato, esse fica desde já por demais clarividente. E será profundo, sabendo-se, como se sabe, da gestão de grande proximidade que acontece ao nível das autarquias locais, em que situações de potenciais conflitos de interesses (públicos e privados) não só apresentam um considerável potencial multiplicativo, como atingem ainda uma forte dimensão pessoal, minando o valor da confiança na imparcialidade.
Na verdade, a solução ora preconizada (e uniformizada) pelo STA não irá apenas implicar uma profunda mudança num paradigma que se foi enraizando ao longo de anos em matéria de adjudicação de empreitadas de obras públicas dos Municípios às suas respetivas Freguesias, contribuindo assim para afastar o sentimento (tão comum) da comunidade sobre tratamentos de favor ou de suspeição que gravita em torno de dadas empresas. Para além disso, irá também ter reflexos profundos ao nível de muitos contratos de empreitada que neste momento se encontram (ainda) em execução, com muitos deles a terem que ser declarados nulos, com todas as graves e onerosas consequências que essa nulidade acarreta.
De resto, o impacto desta decisão será (ou poderá ser) ainda maior se considerarmos aquilo que vem estabelecido na Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto que, regulando a eleição dos órgãos das autarquias locais, estabelece no seu artigo 7.º, n.º 2, alínea c), sob a epígrafe “Inelegibilidade especiais”, que não podem ser eleitos para os órgãos das autarquias locais “Os membros dos corpos sociais, os gerentes e os sócios de indústria ou de capital de sociedades comerciais ou civis (…) que tenham contratos com a autarquia não integralmente cumpridos ou de execução continuada, salvo se os mesmos cessarem até ao momento da entrega da candidatura.”
Com efeito, é verdade que, ao invés dos impedimentos, que estão direcionados para atuar a jusante do ato eleitoral, as inelegibilidades estão antes vocacionadas para atuar a montante daquele. Porém, a verdade é que, nos casos (que serão a sua esmagadora maioria) em que o contrato é celebrado já após o sócio-gerente da sociedade ser Presidente da Junta e, por inerência, membro da Assembleia Municipal, nesses casos verifica-se a sua inelegibilidade superveniente. E a sanção que a lei comina para esses casos é grave e não é de somenos. Como é jurisprudência assente do STA e do próprio Tribunal Constitucional, a sanção que a lei comina para esses casos de inelegibilidade superveniente é apenas e “tão só” à sua imediata perda de mandato autárquico, justamente “por, após a eleição, ele se ter colocado em situação que o tornou inelegível” (in Acórdãos do STA de 30/01/2001 e 23/04/2003).
E portanto, numa altura em que a imagem de objetividade, isenção e equidistância relativamente aos interesses em presença dos nossos representantes políticos é uma imagem cada vez distante e desfocada, naturalmente que, decisões como a acolhida do referido Acórdão, não deixarão de constituir um contributo da maior relevância para projetar para o exterior um sentimento de confiança e transparência no exercício das funções autárquicas, e, por essa via, para vir credibilizar e moralizar o funcionamento da vida política e democrática. E desde logo porque tal decisão irá permitir pôr termo a uma prática promiscua e pouco transparente que foi recorrente ao longo de anos no relacionamento entre autarquias e eleitos locais em matéria de adjudicação de obras públicas. Todavia, não deixará de trazer também consigo o reverso da medalha, que é o de afastar da vida cívica e autárquica todos aqueles que tem vida empresarial própria, sobretudo quando chamados a liderar projetos autárquicos de Freguesia. E isso não deixará também de constituir um profundo revés para o bem-estar das populações que, amiúde, têm na proximidade das suas Freguesias, e dos seus protagonistas, o único amparo para a resolução dos seus problemas concretos.
Pedro Silva Dinis, Advogado e Docente Universitário