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A pequenez de pensamento é uma ‘patologia social’ que se faz notar com mais evidência nos lugares pequenos. A ponto de se atropelar e de a pequenez oca ocupar o espaço do pensamento, que, no entretanto, mirrou e caminha para um finalmente de definhamento mortal. Antigamente discutia-se saudavelmente no cenário tertúlio do café e a esgrima argumentativa urdia-se num empolgante face a face. Agora, não apenas pelo distanciamento social, mas também por escassear ‘aquele tipo de café’, a mediação tecnológica serve o novo [des]propósito, atirando atoardas a tempo e a destempo, sobre tudo e sobre nada, confundindo sem distinguir. Impunemente. Subtil, lenta, mas amplamente, generaliza-se um enfado que se torna endógeno. Não carece de desmesurada inteligência avaliativa o vislumbre de um cansaço generalizado, que pode redundar em desistente desinteresse, mesmo se interiormente suplica por uma rutura, misturada com o sonho da atração do empenhamento suficiente de atores interessantes. Labiríntica personalidade de excessos, onde fado e utopia se desarmonizam.

Esta semana foi a ideia de ‘rasgo’ que ruminou no meu interior. Tem, pelo menos, três escutas possíveis tal termo. ‘Rasgar’ como ‘romper’ conduziria o nosso pensamento para o corte com apêndices acessórios, modos de fazer desajustados, [des]acordos que [já] não vinculam a adesão, mormente pela alteração de contextos. Em ‘rasgar’ como ‘fender’ seriamos guiados para a dinâmica de perfurar a opacidade densa e e[ob]scura de tudo, com a motivação esperante de encontrar [alguma] luminosidade transparente. Já ‘rasgar’ como ‘criatividar’ teria de ser algo como a antecipação no ‘aqui’, pela rutura, da possibilidade intuída como inevitável [no futuro]. O ‘ainda não’ feito ‘já’, por imperiosa urgência reclamada por um ontem que não admite [mais] adiamentos.

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Do rasgo, caminhamos para as tensões, que animam, no sentido em que dão alma – consistência interior -, mais rica ou menos. Isolei uma trindade pessoalmente significativa, que me [nos?] ajuda[rá] a ler a circunstância.

Começo pela tensão entre o ‘diferente’ e o ‘igual’.  Para quem pensa, e com razão, que sou demasiado teórico [mas o que é um texto, senão uma teoria!?], faço notar que não escrevi ‘diferença’ e ‘igualdade’. Estas são repisadas categorias sociológicas – teóricas, lá está – para convocar a reflexão. ‘Diferente’ e ‘igual’ são sujeitos concretos, que convocam a relação, mais dissonante ou mais consensual. O ‘diferente’ não tem cidadania, nem identidade. É pensado a partir de um ‘igual’ que é o pretenso paradigma da ‘normalidade homogénea’. Mais do que ‘estar fora’ dos centros de [pseudo] importância e interesse, o drama é ser ‘sobra’ e não contar. A velocidade voraz do tempo torna ‘resto’ muitos diferentes com uma história escondida por detrás de rostos que foram muito olhados, mas que poucos alguma vez viram. Mesmo que tenham falado muito deles, habitualmente como ‘diferenças’ e só ocasionalmente como ‘diferentes’. E estes podem ser os velhos, os pretos, os estrangeiros, os ciganos, os membros lgbt+, as mulheres, os ‘malandros-‘subsidiodependentes’-que-ousam-enriquecer-com-duzentos-euros-por-mês’… A história lida a partir dos ‘últimos’ encerra outro saber e saber. E mobiliza outro labor. Desde logo, ensina de modo calejado, sujo de baba ou de sangue, encharcado de lágrimas, silenciado pelo sofrimento dilacerante, que a ‘diferença’ está ‘só’ no ponto de vista donde se observa. Parece óbvio, como categoria teórica. Mas aleija quando se experimenta [um pedacinho]. Só que faz bem!

Inquietou-me particularmente também a tensão entre ‘morte’ e ‘vida’. Perturbação intencionalmente buscada, com receio que a ‘morte’ deixe de ser perturbante. Com medo que isso signifique o fim das perguntas, das respostas, das buscas de sentido. Esta ‘reciclagem’ da existência tem tudo de mistério, muito de ‘mau perder’, algo de injustiça. Sem eternidade talvez seja mesmo uma antecâmara insignificante e rídicula. Com esta, um prelúdio de plenitude em jeito de ensaio geral. Mas perturbante! Sobretudo pelas perguntas que a morte de outros coloca à nossa [não] vida! E, convenhamos, que memória e esquecimento são o antecedente um do outro. A obra dos não génios desatualiza e é superada. A ausência relacional é antecipação da ausência de relação. Sobretudo quando as pessoas não são preenchidas de significado e re-significadas novamente [com novidade] com o passar do tempo e da idade. Desaproveitamos o ‘treino’ que podia ser [ao menos isso!] as mortes destes génios e menos génios, dos anónimos com genialidade silenciada, quando a vivemos como novela momentaneamente intensa, que a história se encarrega[rá] de substituir por eventos de atratividade [e agradabilidade] maior. ‘Na fuga para a frente’ não se soluciona o que é insolucionável por natureza. Dissolver esta tensão entre ‘morte’ e ‘vida’ equivaleria à morte súbita, sem o saudável processo do morrer. Os mortos não se contam! Os mortos [re]vivem-se nos [e com os] vivos! Em ritmos plurais e diversos… A [re]inventar linguagens, contextos e práticas… Com pessoas serenas, disponíveis para aliviar o peso incomensurável de outras, mesmo se com o risco doloroso de carregar com ele. Mesmo [e sobretudo] o óbvio e inevitável carece de trabalho.

Por fim, a tensão entre o ‘pequeno’ e o ‘grande’. Com a tentação da grandeza apressada e instantânea, que desaproveita o ‘pequeno’. Leio aqui a centralização pragmática, que não testa uma descentralização empática. A massificação anónima, que não ensaia uma personalização humanista. A agrupação, que descarateriza e aniquila a parte [pequena]. O ‘pequeno’ é o lugar do detalhe, que reclama tempo contemplativo. A experiência da proximidade sem protocolo, que solidifica comunidades coesas e plurais. A oportunidade de ensaiar laboratorialmente possibilidades. E o ‘pequeno’ é o protagonista dos sonhos. Logo, não é fechado, mas poroso, esponjoso e teimoso nas idealizações do que ‘quer ser quando for grande’. Resistente à tendência de ser dominado, amestrado, possuído. Aí reside o fermento da sua grandiosidade. Não na imitação [a destempo] do ‘grande’, mas na curiosidade para aprender e na disponibilidade para fazer caminho. O que já se acha ‘grande’, não precisa e, sendo pequeno, ‘empequenece’ ainda mais, sobretudo por dentro.

Luís Francisco Cordeiro Marques

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