Em março de 2020, Ihor Homenyuk, cidadão ucraniano, de 40 anos, morreu em Portugal, nas instalações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), no Aeroporto de Lisboa. Fechado numa sala, foi algemado com as mãos atrás das costas, amarraram-lhe os cotovelos com ligaduras e espancado durante 20 minutos, com recurso a murros, pontapés e um bastão, por três elementos do SEF, segundo a informação veiculada na comunicação social.
Tudo isto decorreu perante a aparente e conivente inércia, sinistra e friamente medida por parte dos responsáveis, sendo que, abandonado à sua sorte, o cidadão ucraniano agonizou sozinho no chão da sala, com dores, algemado, com vários hematomas, fraturas nas costelas e no tórax que o impediam de respirar, sendo posteriormente revelada a sua morte.
Tal como Pilatos, os envolvidos neste horrendo e covarde crime lavaram as suas mãos, afastando-se de qualquer responsabilidade. Mas lavar as mãos, não é tê-las limpas.
Terão sido proferidas frases como “isto aqui é para ninguém ver”, “agora ele está sossegado” ou “hoje já nem preciso de ir ao ginásio” pelos três inspetores do SEF, acusados de agredir Ihor Homeniuk até à morte. Em mensagens num grupo de WhatsApp, que reunia funcionários de uma empresa de segurança do Aeroporto de Lisboa, produziram-se, entre outras, barbaridades como: “olha, deu nisto”, “bahh… mataram o gajo”, “a culpa não foi de nenhum de nós, ainda bem. Que a culpa seja dos outros”, que traduzem total alheamento pela vida do outro.
Como é que uma pessoa comum consegue torturar com frieza e indiferença um indivíduo naquelas circunstâncias e completamente manietado? Quem consegue é porque a estrutura já está habituada, são acontecimentos banalizados, pois, caso contrário, haveria sempre alguém que não aguentava. Habituados a praticarem torturas com impunidade, tinham e têm cobertura do sistema. Se os inspectores não conseguiam que o cidadão ucraniano acatasse as ordens, de imediato o levavam a tribunal de instrução criminal, a fim de um juiz decidir. Assim se cumpriria o Estado de Direito.
“O mal não está nos torturadores, e sim nos homens de mãos limpas que geram um sistema que permite que homens banais façam coisas como a tortura”, defende Hannah Arendt (1906-1975), filósofa judia, de origem alemã, descrevendo uma pirâmide que vai desde aquele que suja as mãos com sangue, até àqueles que detém poder de topo. Arendt não estava a desculpar torturadores, estava a apontar a dimensão real do problema (Hannah Arendt, in Eichmann em Jerusálém – Uma reportagem sobre a Banalidade do Mal).
Tornaste-te indiferente – mesmo ao próprio horror – quando estás sempre a ver a mesma coisa. Por um lado, é considerado normal, por outro torna-se uma norma. Este último ocorre quando todos dizem coisas como “é assim que as coisas se fazem”. As pessoas acabam por tolerar procedimentos que sabem menos éticos e que justificam em critérios organizacionais.
E há sistemas que banalizam o mal. O que implica que as soluções realmente significativas, as que nos protegem do direito de um grupo no poder dispor da vida e do sofrimento dos outros, estão na construção de processos legais, de instituições e de uma cultura democrática que nos permita viver em paz. Sem a cumplicidade de pessoas comuns que se limitaram a cumprir ordens ou a olhar para o lado, diz-nos Hannah Arendt, os episódios mais negros da história não teriam sido possíveis. Sem a banalização do sofrimento, num processo que abriu espaço para o pior que há em muitos de nós.
E, no caso do SEF, quem exerce o poder – nas várias instâncias, inclusive ao mais alto nível do Estado – procurou abafar o ocorrido durante meses. Até que um excelente trabalho de investigação por parte de alguns jornalistas, o trouxe à tona volvidos quase nove meses. Caso contrário, morria no esquecimento.
Depois disso, a diretora do SEF demitiu-se, demissão que ocorre nove meses depois da morte de um homem, às mãos de um serviço que tinha obrigação de o proteger e que ela liderava. Uma resolução do Conselho de Ministro, de 14/12/2020 publicada em DR, determina uma indemnização a pagar à família da vítima, suportada pelo orçamento do SEF, ressarcir caso os suspeitos sejam condenados.
A indeminização é já assunção de culpa, bem como a reestruturação ou até mesmo extinção do SEF. Até aí, todos se garantiam de mãos lavadas e consciência tranquila.
E, à medida que este novelo vai sendo desfiado, surge como mais do que evidente a amplitude e gravidade dos crimes e os compadrios no sistema que os procura negar, sem deixar de incluir também o que se pode descrever como uma tentativa de encobrimento coordenada ao mais alto nível – quão alto está por esclarecer – que nos remete para o que seria habitual, surgindo outras denúncias de violação dos direitos humanos, não era por um descontrolo ocasional de agentes impreparados, mas como prática instituída.
Aqueles que oportunamente perante as denúncias não actuaram, são responsáveis pelo sucedido. E são muitos os responsáveis. E isto acontece numa das portas de entrada da Europa. Na Europa dos Direitos Humanos. Acontece num país que poderá estar à beira de assumir a comunidade europeia.
Perante a possibilidade de os três inspectores do SEF suspeitos do crime de homicídio perturbarem ou inviabilizarem as investigações – e uma vez que a versão apresentada pelo SEF não corresponderá à “verdade” face à autópsia – foi ordenada a sua detenção fora de flagrante delito. Depois de presentes a uma juíza de instrução, foram colocados em prisão domiciliária. A medida de coação escolhida teve em conta, de acordo com o Jornal Expresso, a atual pandemia da Covid 19.
Caso fosse aplicada uma medida de coacção mais vigorosa e levados para a prisão, como seria habitual neste tipo de suspeitas, os inspectores poderiam ser contagiados ou colocar em risco os restantes detidos. Foi o argumento que a juíza usou, como se não fosse do conhecimento das instâncias judiciais que o sistema prisional está a cumprir todas as exigências sanitárias. A gravidade do ocorrido é tal que aquela juíza ou foi negligente ou interessada. Quem possa ter praticado este crime tem obrigações maiores do que o comum dos cidadãos, estava ao serviço do Estado para garantir a segurança de todas as pessoas.
É o descrédito nas instituições, decorrente de uma cultura de impunidade que tem sido alimentada pela tutela governamental e pelos diversos partidos do poder até aos tempos actuais. Veja-se que, não obstante as sucessivas denúncias e os diversos alertas feitos designadamente pela Provedora de Justiça, em 5 anos, consta que a Inspecção-geral da Administração Interna (IGAI) nunca visitou sem aviso prévio as referidas instalações do SEF no Aeroporto de Lisboa.
Este não pode ser o nosso país, nem a nossa gente, que enfrentou, quantas vezes, sofridos e penosos processos de emigração. As instituições devem ser o espelho dos nossos valores, não podemos permitir que sejam espelho de uma sociedade que continua a ver como criminosos os imigrantes, os estrangeiros (dependendo da origem ou da cor), e isto é não somente um problema moral, mas também legal.
E porque não vale tudo.
Marília Alves