Escrever sobre o escrito, como tema e sobreposição de camadas. Amontoar de redundâncias a realidade até que se silenciem as palavras, espremidas e providas de seiva. Eis o desequilíbrio possível, que dá cidadania ao silêncio e permissão ao subentendido, desvelando do recôndito frestas de potencialidades. Emparelham-se sete possibilidades adversativas, sacramento da paradoxalidade que cimenta e alavanca o humano feito de carne e cérebro.
Provisório vs dogmaticamente definitivo.
O curral [presépio] é metáfora real da itinerância da existência. Frágil e superadora, não fraca e resignada. Recolhida e reclinada momentaneamente, no percurso consciente para o regaço consistente, que é horizonte por fazer antes do Absoluto. O mundo e a vida são assim lidos desde a perspetiva do caminho, que é sempre polifonia multicolor, numa tela de convicções amadurecentes.
A adversativa desta mundividência é a estaticidade enquanto ‘segurança’ e ‘identidade’. O dogma musculado arremessador de anátemas, da ‘trincheira catedrática’ da certeza minúscula e infundada. A univocidade unanimista das opiniões, sem apreço e lugar para o dissenso, ou cobrando por ele dízimos desproporcionados e sem retorno.
Fraternidade naturalmente cultural vs caridade ocasional calendarizada
Da gruta de Belém, primeiro que fé catequeticamente institucionalizada, emana a primazia da igualdade sobre os conceitos de liberdade ou mérito. A configuração com os últimos da história não é um recorte cosmético ou apaziguador de consciências. A utopia anima por dentro, muito para lá da métrica do cálculo. Daí que continue a valer a proposta emancipatória de um humano sujeito, não subjugável, de uma cosmovisão estruturalmente vivificada desde as margens, de uma sociedade tecida no fio do cuidado próximo e global.
O avesso é a caridade de calendário, manipulado pelo interesse próprio, o protagonismo gizado pelo retorno, a partilha desumanizante da sobra que faz do outro resto descartável. Daqui sai comoção anestesiante, acomodação legitimada ao contexto, negação do alicerce eticamente duvidoso, em razão do envernizamento aparente da fenomenologia do edifício.
Palavra que acampa vs ‘palavra que o vento leva’
A palavra que ocorre no presépio de Natal veio para ficar e ‘faz coisas’ galgando as cercas institucionais e os quadriculados dogmáticos, tenham a origem que tiverem. É bom senso partilhado, racionalidade fraterna criativa, enunciação da profundidade simples e da simplicidade profunda, expressão do misterioso, mais que do evidente… É palavra que não cabe na escrita nem na fala e que, por isso, se diz de muitos modos e tem de se dizer muitas vezes. E dizer, no caso, é preâmbulo de viver. E de ser. E de estar. E de renascer. E de enternecer para ‘Eternecer’…
O vento leva[rá] a palavra que é homicídio gratuito e lento, sempre do mais frágil. O vento leva[rá] a palavra sem honra, envernizada de hipocrisia, em nome de uma ‘correção moral’ formalista e ajuizadora sob o código de um [eventual] ‘direito’ que esquece a justiça. O vento leva[rá] a palavra enredada em insignificâncias, sem profecia, sem ‘dentro’ e sem fermentação ‘fora’ de nada de relevante.
Mapeadores vs decifradores
Do presépio emerge um mapeamento de caminho [apenas e, afinal, tanto!], com referenciais éticos e humanos, estações de serviços essenciais, lugares de comida e de habitação. Sinalizar pontos de interesse num mapa é ser ministro [servidor], respeitando, potenciando e contando com os protagonistas da vi[r]agem. Da fragilidade de Belém jorra a energia de uma vida que não se explica/descomplica em absoluto, que mantém o Mistério e que aprecia as perguntas, mais que as respostas definitivas.
Como adversativa cada mais proliferante, temos os ‘vendedores de soluções’, os que sabem exatamente como se faz [ou deve fazer] sem dúvidas e enganos, os que irrevogavelmente não admitem outro caminho além da inevitabilidade que impingem e colocam como canga nos ombros alheios. Tudo, muitas vezes, em nome de um bem-comum-teórico-e-sem-pessoas, com públicas virtudes e fraquezas privatizadas, para que singrem os seus interesses e os dos seus.
Confiança vs ‘cientificite’ ingénua e amadora
Na imagem de Belém está o ícone das vidas que não começam com tudo e uma interrogação lancinante sobre o que possa ser o conteúdo deste ‘tudo’. Esconde-se o óbvio desafio da confiança e o indício de que, sem esta, a existência desmorona, porque não tem suporte. Um mundo de ‘desconfiados’ equivale à amputação das possibilidades da ‘ética do cuidado’ e é uma degeneração civilizacional. Coisa de outro fórum será a institucionalização ou não dessa confiança. Colocado no regaço que se lhe apresenta como de mãe, aconchegado nos braços fortes de alguém a quem se confia como pai, aquecido num contexto mínimo, mas de calor evidente, mesmo sem saber, o pequeno cresce. Lembra-nos que somos igualmente pequenos e necessitados de crescer.
Uma certa ‘cientificite’ ingénua e amadora teima em reger a vida pelo cálculo da folha de excel, aderindo [só] ao evidente, esgotando pretensamente a realidade no quadriculado das suas compreensões. Em nome da segurança, da certeza, da capacidade de prever para controlar. E, de repente, o inseguro, o incerto, o imprevisível e o incontrolável. E a humanidade petrifica. E vacila entre aprender o diferente ou regressar ao comum. E costuma tender para aqui, pagando um preço habitualmente elevado.
Laicidade positiva vs laicismo dogmático e subliminar
A laicidade é o valor civilizacional que permite que todas as espiritualidades tenham espaço. Parte da constatação antropológica que afirma o espiritual como parte do humano e da evidência sociológica segundo a qual o espiritual [e o religioso] é um facto social. Da simplicidade da melodia natalícia emerge também este desígnio imperativo.
Não é colonização religiosa no espírito das cruzadas, cocktail religioso indiferenciador ou recondução de todas as espiritualidades a uma forma pretensamente correta de a viver. É identidade e diálogo pontífice de diversidades. Menos do que isto é inteligência comunitária deficitária e resultados aquém das possibilidades humanas.
Cultura, cultivar, inculturar, multiculturar vs negação e regressão culturais, com embrulho de modernidade ou cedência populista
Do presépio aprendemos que a cultura implica trabalho objetivo, cultivo: família, migrações, serviço… Esse cultivar de Humanidade corresponde a uma inculturação em contextos, em diálogo bilateral de influências recíprocas. O ponto de chegada terá forçosamente se ser multicultural e intercultural, sem recondução de tudo ao hegemónico, denunciando a igualdade que descarateriza e a diferenciação que marginaliza.
Negar este dinamismo implica necessariamente regredir a um estado primitivo de Humanidade, mesmo se a cosmética exterior parecer moderna, ou cedência ao populismo, com as armas demagógicas que visam apenas o cálculo aritmético do retorno que vale a pena para quem o calcula.
Boas perguntas auto perguntadas e votos de um tempo feliz!
Luís Francisco Cordeiro Marques