A ano de 2020 ficou tristemente marcado pela pandemia da Covid-19 ou, se se quiser explicar — à maneira inglesa evidentemente (mesmo agora, depois do Brexit, o inglês parece continuar a ser a língua oficial da União Europeia!) — , pela Coronavirus Disease 2019. Mas também ficou marcado por vários centenários ou aniversários bem mais interessantes. Foi, por exemplo, o ano do centenário do nascimento de Amália Rodrigues (1920-1999) ou… dos 250 anos do nascimento de Ludwig van Beethoven (1770-1827). O primeiro — o que era natural, dada a excelente voz de Amália, que se fez ouvir em muitas gerações e lugares, e pela sua própria evolução estética, o que terá justificado a sua entrada para o Panteão, que hoje é pouco mais do que um discutível monumento memorial — foi muito badalado em todos os meios de comunicação e em espectáculos. E continua a ser, como é o fado, tão criticado, todavia, antes da revolução de Abril, a ponto de se falar, negativamente, da trilogia “Fado, Futebol, Fátima”, hoje outra vez presente, apesar de Amália ser muito mais do que fadista. O segundo foi discretamente referido e ouvido aqui em Portugal, com concertos para melómanos ou simples admiradores, e com a reedição das nove sinfonias do notável músico de Bona, que passou grande parte da sua vida na Viena imperial, sabendo ultrapassar os seus condicionalismos através das suas posições sociais, políticas e melódicas, o que o leva a ser considerado um “revolucionário”. Mas… também ocorreu o Bicentenário da nossa Revolução de 1820.
A sua importância é indiscutível, por mais que — em certos meios ideológicos — se queira dizer o contrário. Poderá ter surgido em 24 de Agosto de 1820 no Porto sobretudo como reacção de militares e civis à Regência dominada pela Inglaterra, dada a saída da família real para o Brasil no ano de 1807, em consequência das Invasões francesas. No entanto, recordando algumas velhas leis “liberais” da nossa monarquia, mas sobretudo sob influência das transformações ditadas pela Revolução Francesa (que fez parte da formação dos revolucionários, como Manuel Fernandes Tomás), afirma-se como “revolução liberalista” e dela nasce a nossa primeira Constituição elaborada por Cortes Constituintes — a Constituição de 1822.
Acompanhando a Espanha do Trienio (1820-1823), que voltou a pôr em vigor a mais conservadora Constituição de Cádis, de 1812, também o nosso “Vintismo”, como a sua Constituição “quase republicana” (como bem notou Herculano e tem sido confirmado por constitucionalistas), não durou mais do que três escassos anos. Contudo, esse tempo foi suficiente para marcar o compasso da vida política da nossa história.
Apesar da reacção da Vilafrancada (27 de Maio de 1823), o liberalismo suave da Carta Constitucional — esta doada pelo príncipe D. Pedro — surgiu em 1826 e, pese embora o regresso do absolutismo puro e duro de D. Miguel, em 1828, o liberalismo cartista regressou em 1833-1834. Guerras civis atravessaram o Portugal oitocentista e o “Vintismo” voltou a ser lembrado com a Revolução de Setembro de 1836, que gerou uma Constituição, de 1838, que pretendia ser uma conciliação entre o espírito cartista de 26 e a Constituição de 22. Mas venceu o sentido mais moderado da política e algumas alterações desenvolveram-se, enfim, com o fontismo (de Fontes Pereira de Melo), e as suas práticas de desenvolvimento e “progresso”, conforme aspiravam também os liberais de 1820. Enfim, malgrado a opinião de ideologias de “direita” de hoje, que por vezes penetram até no campo da historiografia, pode dizer-se que seria lógico, em termos de objectivos e considerações políticas, que no Portugal republicano, em 1920, a Revolução fosse entusiasticamente celebrada, assim como no Portugal democrático de 2020.
Porém, a natureza mais uma vez parece ter sido inimiga das comemorações do nosso primeiro liberalismo. Se em 1920 ele teve uma modesta recordação pública, em parte devido à ameaça que ainda se fazia sentir da pneumónica ou “gripe espanhola”, bem como de uma epidemia de tifo — além da crise política que se processou com o movimento monárquico de 1919 e com as lutas partidárias —, neste ano de 2020 foi em especial o coronavírus que evitou que se tivessem realizado grandes e pequenas comemorações, com excepções em relação a alguns casos.
Assim, o Porto teve de suspender um vasto programa de comemorações, organizado pela Câmara Municipal e pelas universidades. O mesmo sucedeu em Lisboa, para que estava programado no mês de Outubro, organizado por uma Comissão Nacional do Bicentenário presidida pela historiadora Miriam Halpern Pereira, um Congresso Internacional, a realizar na Assembleia da República. Apenas em 12 de Outubro (dia em que se iniciaria o congresso), o seu presidente falou da nossa primeira revolução, tendo convidado a fazer curtas intervenções Guilherme d’Oliveira Martins, presidente da Comissão dos 200 anos do Constitucionalismo, e a citada presidente da Comissão Coordenadora do Congresso Internacional. Os jornais, com particular relevo para o Público, apresentaram alguns artigos sobre o tema, assim como revistas de divulgação, com particular significado para o Jornal de Notícias–História, e publicações académicas, como a Revista de História das Ideias, da Universidade de Coimbra. Mas, entretanto, a Academia Portuguesa da História, conjuntamente com a Academia da Marinha, teve de adiar até uma sessão comemorativa marcada para 7 de Outubro.
Em Coimbra e na Figueira da Foz, terra natal de Manuel Fernandes Tomás, ainda se celebrou fugazmente o bicentenário. Foi apresentada na Figueira a reedição da biografia do “patriarca” da revolução liberal (falecido durante o Vintismo, em 19 de Novembro de 1822, com a auréola de ter morrido pobre), cujo livro havia sido publicado pela primeira vez em 1983 por José Luís Cardoso, e uma selecção dos seus escritos políticos e discursos parlamentares, com a introdução e coordenação do mesmo historiador. Em Coimbra, as comemorações tiveram essencialmente um carácter cívico, com a apresentação, no histórico Café Santa Cruz, do livro de textos de José Liberato Freire de Carvalho e de José Ferreira Borges sobre a “Regeneração de 24 de Agosto”. Em Novembro e Dezembro, surgiu a edição de uma obra de Vital Moreira que, com José Domigues, e como constitucionalista, tem sido nos meios académicos quem mais tem promovido as celebrações da Revolução de 1820, não esquecendo outro livro, publicado pela Câmara Municipal de Coimbra, que fala da importância que teve a Cidade e a Universidade no percurso revolucionário. Foi fundamental não só como ponto de passagem da Revolução iniciada no Porto, mas como centro de combate e difusor dos revolucionários liberais que se espalharam pelo país, tendo sido, alguns, deputados às Constituintes e às Cortes Ordinárias, onde tiveram um papel significativo na discussão de temas sensíveis, como a Instrução Pública, conforme provei, com Isabel Nobre Vargues, numa obra de 1984, A Revolução de 1820 e a Instrução Pública, que agora oferecemos à Biblioteca Municipal de Penacova. Seguir-se-á, em 2021, ano do centenário da abertura das Constituintes, outro livro meu sobre a Revolução e a Contra-Revolução.
As nossas escolas e as entidades públicas não puderam (mas talvez também, lamentavelmente, lhes passasse despercebido este acontecimento) celebrar a Revolução de 1820, que é, portanto, um dos factos mais importantes da nossa História. Por isso quis, nos derradeiros dias deste ano — que, ao contrário do que se diz, não é para esquecer — lembrar este facto. Ele transformou Portugal num país moderno, mesmo que se mantivesse antiquado durante largo tempo nos meios considerados “populares” e permanecessem incertezas e dúvidas quanto ao desenvolvimento do país, conforme o proclamou Herculano, que melhor do que ninguém o conheceu. As terras de Penacova e de Lorvão estiveram também no seu percurso.
Essas dúvidas e incertezas vieram ao de cimo, como noutros países, através de ideias e de sistemas contra a Liberdade, que se julgavam ultrapassados e até extintos. Tal como hoje parece suceder, porque a história, infelizmemte, não é uma linha recta em direcção à felicidade humana, nem se desenvolve de forma paralela ou “global”. Quando muito é uma espiral, que vai passando por idênticos e diferentes momentos, mas que avança, de forma incerta e nem sempre coordenada com os verdadeiros valores, nunca voltando, porém, numa forma circular, ao ponto de origem.
Recordemos, portanto, a Revolução de 1820 como facto político e social sem precedentes, embora com raízes atrás. Será uma forma positiva para encarar o fim deste ano de 2020, em que parece desabrochar a esperança da extinção da pandemia, e o ano de 2021, que esperamos vir a concretizar essa esperança. De resto, Penacova não poderia esquecer este acontecimento que iniciou o processo de descolonização, tão arrastado, com a perda do Brasil ou a justa conquista da sua independência, cujo primeiro centenário se veio a celebrar em 1922 com a presença de António José de Almeida, figura ímpar da nossa Primeira República. Personalidade, que ostenta no seu busto o título de “Glória Concelhia e Nacional”, mas que, lamentavelmente, foi esquecida pelo Agrupamento das Escolas de Penacova, sem uma reclamação pública, o qual fez cair o seu nome ligado à escola principal da vila durante vários anos, o que se trata de um facto inédito em termos de denominação de patronos escolares. Lamentavelmente — dizíamos — pois nenhum outro estadista republicano se preocupou mais do que António José de Almeida com a Instrução Pública, que foi, na verdade, um dos pontos mais defendidos, e de forma mais original e avançada, pelos revolucionários de 1820.
Luís Reis Torgal
LUÍS REIS TORGAL nasceu em Coimbra, a 14 de Janeiro de 1942. Licenciou-se em História (1966) e doutorou-se em História da Cultura (1978), na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde foi professor catedrático, entre 1987 e 2007 e leccionou disciplinas de História Moderna e Contemporânea e de Teoria da História. Foi coordenador científico do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) e é membro de diversas sociedades científicas. Os seus actuais interesses científicos e temas de investigação focam-se na História do Estado Novo, do Fascismo e dos Movimentos Autoritários; na História da Universidade e na História e Teoria da História. Publicou, entre outras obras, A Universidade e o Estado Novo (1999), Estados Novos, Estado Novo (2009, Prémio Joaquim de Carvalho da Imprensa da Universidade de Coimbra) e António José de Almeida e a República (2004, Prémio de História Contemporânea da Academia Portuguesa da História). Foi galardoado com a Medalha de Mérito do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, em 2016 e o Prémio Barbosa de Melo de Estudos Parlamentares, em 2018