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Há algum tempo, deparei-me com um caso que é bem demonstrativo do até onde é que a sociedade e as famílias dos pedófilos e abusadores sexuais de menores vão – e isto em pleno século 21 –  para culpar as crianças: um pai violou a filha menor, de forma repetida, ao longo de vários anos. Foi preso e condenado pelo crime. A mãe do abusador, avó paterna da criança, em defesa do filho dizia: “tinha 8 anos e já se pavoneava na frente do pai”. E tudo isto decorria perante o silêncio conivente da madrasta da criança.

Recordo sempre esta situação quando surgem casos de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual.

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Quantas vezes, ao surgirem as primeiras denúncias de abuso sexual de crianças, estas são imediatamente apelidadas de mentirosas, culpadas, sobretudo as meninas, porque “provocam sexualmente os homens”, com o seu comportamento e indumentária. Porque usava saia curta, cabelo solto, ou até mesmo porque estava sem fralda (este último caso, acontece, e por mais perverso que seja). Não podemos sequer considerar que as crianças, na sua inocência infantil, sejam culpadas por pensamentos, sentimentos e desejos que suscitam em algumas pessoas.

As crianças não provocam, não seduzem, não enfeitiçam: tudo isto são falsos argumentos que o agressor – ou os familiares – pode usar para minimizar os seus comportamentos ou para se desresponsabilizar pelo acontecido. Nenhum comportamento da vítima pode ser usado como motivo para o abuso sexual. O principal responsável é a pessoa que o pratica e nunca – em caso algum –  o alvo dessa violência. Um pedófilo não é um desgraçado incapaz de resistir à tentação de abusar de uma criança. É um homem adulto e penalmente imputável.

As crianças possuem cromossomas sexuais, logo não são seres assexuados. Contudo, isso não significa que possam, efectivamente, estar associadas a desejo ou interesse sexual. Porque não têm maturidade para uma relação sexual. Se uma criança é vítima de abuso sexual, ela não teve “sexo”, foi violada/abusada. Culpar as crianças é imoral e desumano.

Entre adultos e menores, não há relação sexual consentida. Há crime. Há abuso sexual e há violação. E não é preciso forçar ou apontar uma arma à cabeça de alguém para a coagir a fazer algo. Haver mulheres/mães/elementos da família que culpem crianças ou adolescentes pelo abuso sexual de que foram vítimas, é hediondo. Um abusador de menores nunca é um bom pai, não é um bom ser humano.  E não pode haver qualquer desculpa para a pedofilia. Por isso os pedófilos são legal e criminalmente imputáveis.

Sentir desejo sexual por uma criança é uma parafilia elencada no Manual Diagnóstico e Estatísticos de Transtornos Mentais (DSM-5), publicada pela Organização Mundial de Saúde. Uma parafilia é uma perversão sexual em que um indivíduo adulto sente desejo sexual envolvendo crianças e adolescentes, sendo mais frequente em homens do que em mulheres (estima-se que 97% a 99% dos pedófilos e abusadores sexuais de menores sejam do sexo masculino).

A criança não é o sujeito activo desse distúrbio, é uma vítima. Afirmar que as crianças podem estar associadas a um tipo de interesse ou desejo sexual, atribuí um papel à criança numa parafilia que lhe é totalmente alheia. O facto de alguns homens sentirem desejo sexual por crianças, não pode ter qualquer impacto nestas, sob pena de estarmos a desculpabilizar a pedofilia e o abuso sexual, e a minimizar a gravidade destes crimes.

O crime sempre existiu, mas desvalorizado e, na maioria das vezes, remetido ao silêncio. Mas, a dor das crianças abusadas sexualmente, não mente. Remetidas ao silêncio, quantas vezes assediadas dentro da própria casa por elementos muito próximas, nos quais confiavam e tinham como protector, coagidas com o “não contes a ninguém, é o nosso segredo”.  Sim, porque os pedófilos contam com o medo da criança em se expor.

“O silêncio é a alma das agressões sexuais. Os criminosos sexuais conseguem agir impunemente durante décadas, talvez mesmo durante toda a vida, enganando todo o tipo de pessoas, em todo o tipo de lugares. Temos tanta tendência a confiar em alguém desde que não seja um mendigo esfarrapado ou pertença a um grupo étnico diferente do nosso, desde que se assemelhe a nós e fale como nós falamos – especialmente se se tratar de um padre ou de um pediatra ou de um professor” (Anne C. Salter, in “Pedofilia e outras agressões”, 2003).

Ainda, segundo a autora “nunca encontraremos um abusador de menores que não seja um mentiroso experiente, mesmo que a sua arte não seja nata”. Com frequência, são elementos da família, o pai, padrasto, irmão, tio, avô, cunhado, etc. Há também um grupo de pessoas que não do núcleo familiar, mas com acesso à rotina da criança e que se aproveitam da proximidade, para cometer os mais diversos actos libidinosos. Muitos casos, continuam a não chegar ao conhecimento das autoridades, pois as vítimas, por vezes, são ameaçadas, ou têm medo e vergonha de denunciar, gerando dessa forma um sofrimento nas crianças que perdura por anos e gera sequelas para toda a vida.

Quando se descobre, as pessoas têm dificuldade em aceitar o abuso e a família tem tendência a encobrir esse crime horrendo. Ignorar uma revelação válida pode ter consequências desastrosas. No mínimo, aumenta a confiança do criminoso na sua capacidade de passar impune. Frequentemente, constitui uma permissão para atacar a mesma criança ou outras. Importa, também, ter em conta que uma pessoa que abusa sexualmente de uma criança fá-lo por (com) pulsão e as pulsões sexuais não desaparecem com tratamentos e aconselhamento, pelo que é necessária atenção redobrada a elementos já identificados e intervencionados.

Se na família são contadas as piores histórias, a pedofilia chega a outros lugares, como instituições que acolhem ou desenvolvem actividades com crianças.  Chega a lugares onde a fé e as rígidas normas de conduta eram ditas como exemplo para a sociedade. E não ronda apenas os templos católicas, também protestantes e de outras crenças. Na Igreja Católica vêm a surgir a descoberto inúmeros casos, ainda que muitos continuem no silêncio dos templos, e pela falta de transparência e encobrimento da Igreja a respeito desses crimes.

Em Portugal, o caso da Casa Pia veio a levantar o véu que encobre esta realidade infame que é o abuso sexual de crianças, verificando-se uma rede enorme e extremamente poderosa de envolvidos, em que eram abusadas à luz do dia, crianças que o Estado tinha obrigação de abrigar e proteger. Estas pessoas encobrem-se umas às outras, porque se um é preso, são todos presos. Não querem que ninguém saiba e muitos duvidam, até hoje, da culpa desses senhores bem-conceituados e socialmente bem-posicionados, alguns dos quais condenados.

Os casos que mais preocupam são os que envolvem pessoas aparentemente acima de qualquer suspeita, pois segundo as estatísticas a maior parte das pessoas condenadas pelo crime de pedofilia, não tinha antecedentes noutro tipo de delito. Muitas vezes, procuram empregos em lugares em que possam ficar mais perto das crianças, pois os pedófilos, em geral, não tiram prazer só do ato sexual, mas da convivência com a criança.

A vítima, nesses casos, é normalmente estigmatizada, havendo uma tendência social de acusá-la directa ou indirectamente por ter provocado o abuso. Sente-se impotente até mesmo a delatar o abusador, sentindo-se culpada e temerosa de represálias. O que torna muito difícil a identificação e interrupção do abuso.

A maioria dos casos é descoberta por outro indivíduo adulto, que fica sem saber como lidar com a situação. Se é um adulto e se enquadra no papel de “descobridor”, procure um profissional para orientação. Apresente queixa judicial. Assim está a ajudar a criança e o pedófilo a ser condenado.

A pandemia criou um cenário no qual pessoas da mesma família – ou até da mesma instituição – têm passado mais tempo juntas e o contacto com o meio exterior diminuiu, o que infelizmente pode levar a um aumento no número de crimes sexuais praticados contra crianças e adolescentes. Além de permitir a concentração de abusadores e abusados num mesmo ambiente por mais tempo, a diminuição dos contactos com pessoas e serviços fora do núcleo familiar ou institucional dificulta ainda mais o reconhecimento e notificação dos casos às autoridades competentes.

Entidades a recorrer:

Autoridades policiais (GNR e PSP) e Serviços do Ministério Púbico competentes na área de residência.

SOS Criança:  linha 116111. Também é possível pedir ajuda por WhatsApp (número 91 306 94 04), email e chat (soscriança@iacriança.pt ou soscriança.ajudaonline.com.pt).

Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ)  recomenda que se telefone também para o número europeu de emergência (112), para o Projecto Care APAV (21 358 79 00) ou para a CPCJ da área de residência (disponível no site: www.cnpdpcj.gov.pt). Também se pode recorrer à comissão nacional, através das suas páginas no Instagram ou Facebook.

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima – APAV disponibiliza no site www.apav.pt informação sobre o tipo de apoio prestado.

Marília Alves

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