A maior virtude da democracia será a capacidade que esta encerra de conviver com o mais absoluto contraditório. Convenhamos que a liberdade de expressão não pode ser uma tese teórica, para usar em favor dos nossos concordantes ou para conceder uma dissonância dentro de ‘padrões «aceitáveis» e «corretos»’. O primeiro grupo facilmente dispensa a liberdade e a sua voz é o simples eco redundante. O segundo coloca-nos diante do problema de decidir quem define a «aceitabilidade» e a «correção». Ressalve-se que se alude aqui a conteúdos e não a forma de ser, estar ou dizer, porque, no tocante a educação, urbanidade e cortesia, a idade do ‘homo sapiens’ já não devia deixar lugar a dúvidas. Ressalve-se, ainda, que esta questão não é longínqua deste nosso território concelhio, por duas razões facilmente sintetizáveis: ‘o que é nacional é nosso’ e essa ‘nebulosidade sincrética de conteúdo’ já «andou por cá», sendo que água não era/é a sua preocupação fundamental.
Posto isto, é no terreno argumentativo que os argumentos se dirimem. Querer calar alguém ‘porque sim’ ou ‘só’ porque se discorda, bem como desvalorizar esse alguém, assumindo que vai ser desvalorizado pelos que ‘pensam como nós’, são expedientes que enfermam de diversos erros estruturantes e estratégicos. Ao nível dos princípios, atentam contra uma ética humanista e corroem os valores da democracia que prezamos e queremos preservar. Logo, taticamente damos visibilidade aos vícios do sistema e agigantamos a onda dos descontentes em relação ao mesmo, em regra historicamente criadores de sucedâneos pouco edificantes e habitualmente com pouco apreço pelos mecanismos ‘saudáveis’ que lhes permitiram discordar e gerar uma ‘coisa’ diferente. No campo estratégico, damos azo à vitimização do adversário e, num ápice, o discurso deixa de ser sobre ideias para passar a ser fulanizado e animado pelo arremesso alternado de tendências moralistas. Assim, racionalidade, humor e, apenas no limite das possibilidades e esgotadas todas as ‘instâncias’ da urbanidade e da cortesia, silêncio, podem ser a tríade do método de ocupação do espaço público no cenário que temos diante. Falamos, com se intui, das eleições para a Presidência da República.
A pretensão não é fazer ciência política. Fica muita temática de fora. Ainda assim, gostaria de sublinhar três aspetos, que me suscitam inquietação pessoal.
A primeira questão centro-a no ‘papel do Presidente’. Parece confuso. Propositadamente, da parte de agendas candidatas, talvez esperando que o ruído impeça o esclarecimento discernido e sirva para alimentar ladainhas mobilizadoras dos seguidismos [só] emotivos e acríticos. Bem sabemos que na eleição do fim do mês, por um lado, estarão em jogo escolhas políticas e, por outro, que o Presidente da República não se reduz, no nosso regime democrático, a um ornamento do sistema político. Mas conviria não perder de vista que esta eleição é nominal e que, no semi presidencialismo, não estamos a eleger alguém com poderes executivos. As maiores atoardas que recheiam parangonas de redes sociais são, em nome do bom senso, impossibilidades legais no nosso quadro parlamentar. E quem as diz, sabe-o muito bem! Assim, será bom pensar que vamos eleger uma figura congregadora, gestora de tensões, mapeadora de caminhos, capaz de fazer. Elegeremos uma personalidade chamada a ser diplomata de proa em nome de toda uma Nação, com firmeza e inteligência, com voz dentro e fora, com a arte da cooperação e a clareza da demarcação. Elegeremos a referência da magistratura de influência, discreta quanto tem que ser, assertiva o bastante, para que saibamos sempre para onde queremos ir, sem nos esquecermos do que somos e não devemos querer. Elegeremos alguém servidor das pessoas, preferencialmente daqueles de quem muitos se servem, com a poderosíssima arma da palavra da proximidade, da denúncia e da profecia. Bem sabemos que o Presidente pode ir um pouco mais longe, na excecionalidade. Felizmente que, no equilíbrio harmónico tendencial da sociedade portuguesa, tem sido isto. Uns melhores que outros, claro. Mas isto, que parece pouco, é gigantesco e estruturante. Agora, é um facto que alguém só pode ser e fazer alguma coisa a partir do que é. Acreditar que é no cargo e nas circunstância que alguém se converterá, até ao limite do contrário dos sinais que dá, é um perigo que pode ter um preço demasiado alto. Em nome da decência humana mínima, talvez valha a pena pensar agora e não tarde.
A segunda questão, resumo-a nesta dicotomia moralista que segrega a comunidade portuguesa, dividindo-a entre ‘os do Bem’ e ‘os do Mal’, os primeiros trabalhadores, os segundos sorvedores do trabalho dos primeiros. Assim, ‘meio meio’, numa aritmética que parece colher em quem desiste de pensar e olha para aquela narrativa cénica como algo longínquo, que nada tem que ver com a ‘sua rua’. A pregação em causa nem se digna dar o benefício da dúvida à bondade da sociedade portuguesa, dado que antecipa uma perigosa divisão simétrica da mesma entre ‘bons’ e ‘maus’ e anuncia a necessidade e a conveniência de escolher um lado. Arrisco dizer que a narrativa investe mais tempo a falar dos ‘maus’, justamente para colocar os pretensamente ‘bons’ contra aqueles, para o caso de algum se distrair. Convenhamos que a categoria escolhida é muito difícil de definir com clareza. Daí que, volta e meia, se concretize essa ‘maldade estrutural’ em coisas mais visíveis ‘a olho’, como a coloração epidérmica ou as bandeiras que se agitam, supostamente menores, à luz da doutrina que se quer impor, para já como correta, quem sabe, depois, se como oficial. Quem define a bondade? Só por ingenuidade se pode imaginar que quem assume este pressuposto vá condescender, permitir, favorecer o contraditório ou usar essa bondade [também] em favor dos ‘maus’. Afinal, ser bom com os bons, nada tem de extraordinário. Em nome de que critérios se estruturam tais trincheiras? As histórias das colonizações e das inquisições, dos superiorismos morais, culturais, raciais e religiosos nunca tiveram um final feliz. Hoje, mesmo à distância de atrocidades generalizadas de outros tempos, os princípios que as nortearam aí estão, auto alimentados e visíveis como reação aos vícios das democracias. Talvez sejam mais dissimulados, muito em razão da pressão mediática, mas vão perdendo a inibição. Um pormenor, entre o detalhe e o humor: a instauração desse estado de perfeita bondade, carece do apoio do ‘lado mau’, dado que empate técnico não equivale a vitória. Assim, ‘escorraçar os maus’ talvez seja um erro estratégico, quando, afinal, se precisa deles.
A terceira nota, reduzida, enquadro-a no messianismo auto proclamado na essência e que mima na forma alguma cenografia ‘religiosa’, roçando aqui e ali a histeria. É curioso como algumas elites de cátedras e insígnias se erguem contra derivas heterodoxas de quem se diz ‘fiel’, sobretudo quando a moral é a matéria em causa. Exatamente os mesmo costumam silenciar-se quando está em causa conteúdo ligado às ‘questões sociais’ e assim permanecem agora, diante de recorrentes epítetos como ‘enviado’ e ‘sinal do céu’. Nada estará propriamente ‘errado’ ou ‘incorreto’. Mas lá que parece, parece.
Valerá a pena a discussão num reino onde se diz que uma coisa é a opinião científica [das ciências sociais e humanas, ainda por cima] e outra, distinta ao que parece, é a opinião política? Talvez não, mas tem mesmo e inevitavelmente de ser. Sob pena, entre outras coisas, de se abandonar a verdade como valor [saltitando graciosamente de opinião em opinião], a comunidade como experiência humana [habitaríamos trincheiras mais ou menos fortificadas] e o provisório como caminho para o definitivo [circularíamos viciosamente entre dogmas monolíticos e sem futuro].
Luís Francisco Cordeiro Marques