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Reduzi drasticamente, há algum tempo, uma atividade que redundava ‘a espaços’ numa certa irracionalidade – a discussão ‘de café’ sobre futebol. As duas razões: a dita irracionalidade, contraditória da inteligência que estimo, e a ‘inveja’ dos comentadores-adeptos amplificados na televisão, onde não reconheço mais conhecimentos sobre o clube de que sou adepto do que aqueles que eu possuo. E a eles pagam! Recordo sempre a história de alguém que se mantém como comentador, que foi impedido de escrever seriamente em ‘jornais de economia e negócios’, por causa da possível conflitualidade com os clientes da entidade financeira para onde fora trabalhar, e liberado para ‘comentar bola’ na televisão e ‘escrever sobre bola’ no jornal do mesmo grupo, porque isso seria ‘entretenimento’ e não ‘coisa séria’. Estamos entendidos!

Diminuiu este ‘produto jornaleiro’ – a bola -, emergiu o ‘produto Covid’, ‘espremido’ de modo simétrico, com casuística estafada, superficialidade embrutecedora, culpabilização arremessada contra alguém, sempre da trincheira do ‘outro lado’. O empanturramento da desinformação atingiu a náusea. Nas televisões temos licenciaturas em ‘tudologia’, seja na versão semanal de ‘catequeses domingueiras’ ou no registo de ‘liturgia diária’, muitas vezes a ‘passar’ as ‘contas de um rosário’ de agenda com segundas intenções. Impõe-se, por sanidade mental e física, ver e ouvir o mínimo para sobreviver, sem cedência à gula, com dieta rigorosa do ver e do ouvir, se necessário. Nas redes sociais, um desfile de ignorância entre o risível e o assustador. No meio deste lamaçal, muitos especialistas merecem o reconhecimento de todos, porque persistem no esforço de informar, esclarecer e formar. Quem sabe os peixes ouçam! É agora que tem de se democratizar criativamente a cultura, que não pode ser luxo, acrescento ou supérfluo adorno. Talvez nunca como agora a Humanidade esteja ávida de capacidade de leitura dos sinais dos tempos, de sentido crítico emancipador e protagonista, de linguagens contemporâneas para falar na/à pluralidade – que é um modo de ser/estar que não admite volta -, para afirmar o humano, mesmo se diante do desumano e com preço a pagar por isso.

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O sistema quer reduzir-nos a produtores e consumidores.

Quem produz em ‘grande escala’ é ‘divinizado’ por enriquecer e dar migalhas aos ‘súbditos’. Quem produz por conta de outrem, não passa da ‘cepa torta’ e é esmagado pela pressão resultadista de uma estrutura que o quer mecanizar e que deseja apenas que produza [cada vez] mais. E o pragmatismo raramente deixa espaço para a emancipação. Quem [supostamente] não produz, não vale nem conta, mesmo que até queira e que ‘dependa’ apenas de alguém que lhe dê espaço perto de si. Quem deixou de produzir, pelo avanço da idade, atrapalha. Custa caro, custa tempo que não se quer gastar e custa esforço que ninguém quer pagar.

Quem consome diferencia-se, ainda que por fora, pela ‘ganga’ que acrescenta ao corpo e pela ‘quinquilharia’ com que atafulha a existência. Não tanto nem necessariamente pelo que é.

A desumanização associal rotula-nos quantificadamente como produtores e consumidores, para nos arrumar numa estatística de laivos facilitadores.

Tomo como exemplo as Escolas e os Professores, neste tempo de particularidades muito específicas. A náusea da discussão politiqueira sobre como devia ter sido, que era melhor de outra maneira, que se estava mesmo a ver que assim não ia resultar, já insulta a inteligência. Entendo que viver é uma negociação permanente. Mas não há negociação que sobreviva sem estabilidade. E o que vemos são ‘fait divers’ argumentativos, que diferem de acordo com o dia da semana, o interlocutor, a agenda do mês que vem ou a sondagem da próxima semana.

Mas isto é sobre pessoas, caras amigas e amigos! Nomes, histórias, vidas…

Talvez fosse tempo de se pensar os modelos que estão em causa. A Escola não é uma ‘mercearia’ fornecedora de aulas, nem os alunos são consumidores de aulas. Descuidamo-nos e já não conseguiremos escrever Escola com maiúscula, porque não se distinguirá substancialmente de um tutorial disponível no Youtube. Um passo mais e o Professor pode ser um ‘entretedor’ digital, que se distingue pela performance acrobática das suas palavras na ferramenta de multimédia usada e não pela densidade e pelo alcance das mesmas. Fosse o problema distribuir computadores pelos alunos do país inteiro e o futuro seria o melhor dos mundos! Fazer de conta que é, vender isso como dogma, desrespeita as pessoas do presente e hipoteca o futuro. Além de incapacidade estratégica, é irresponsabilidade e deficiente mobilização das inteligências experientes para o nobre exercício de pensar.

Toda a analogia tem limites. Ainda assim, arrisco propor, para reflexão pessoal, duas outras dicotomias: partidos como produtores de políticos e cidadãos como consumidores da política por eles produzida; igrejas como fornecedoras de religião e crentes como consumidores da mesma…

Por fim, não entendo muito bem decisões centralizadas, que querem tratar como igual aquilo que é diferente cultural e geograficamente, chamando a isso justiça. Compreendo a necessidade de gestos proféticos, que sejam sinais inequívocos. Apenas nesse sentido. De contrário, custa-me pensar que o local e o individual/pessoal sejam tratados como infantis ou acéfalos. Há dias, o bispo do Porto escrevia que dispensava do preceito dominical os crentes cuja saúde corria maior risco. Apesar de não apreciar a linguagem, entendo-a. Ainda assim, apetece-me perguntar se não faria sentido confiar na capacidade de discernimento lúcido de cada pessoa concreta. E se isso não seria bastante, quando se quer construir uma comunidade humana adulta e fraterna. Paralelamente, não entendo para que servem lideranças de CCDR’s, de CIM’s, de Câmaras, de Juntas, de Escolas […] se não se confia nessas lideranças para o discernimento e para a decisão sobre o bem maior em cada circunstância e em cada local concretos. A coesão social corre o risco de ser um envernizamento superficial, se conseguida à custa de um unanimismo que concede o seu assentimento sem pestanejar. Além disso, o estrito ‘apelo à autoridade’ é um tipo de raciocínio que na catalogação da lógica clássica é considerado falacioso. No entretanto, é engraçado ver o enfurecimento das frentes de combate que não admitem que se discorde da autoridade, para declararem prontamente a sua adesão quando a autoridade ‘decreta’ aquilo que os ‘contestatários’ reivindicavam.

Isto é mesmo sobre pessoas, ‘demasiado humanas’, convém não esquecer.

Luís Francisco Cordeiro Marques

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