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De que falamos quando dizemos as palavras?

Eutanásia [‘boa morte’, à letra] é o processo pelo qual alguém se suicida de modo medicamente assistido ou pede livre e conscientemente a ajuda de profissionais de saúde para que lhe antecipem a morte. As razões têm de ser enunciadas pelo próprio, livre, consciente e reiteradamente, sujeitando esse seu desejo ao escrutínio de profissionais de saúde [4 na ‘nova lei’ portuguesa], que terão de reunir consenso absoluto entre si, para que tal intenção da pessoa doente possa ser concretizada. O alicerce ético maior é o valor da autonomia do indivíduo. É punível pela lei portuguesa. Passará a ser despenalizada, após a promulgação do diploma aprovado na Assembleia da República a 29 de janeiro de 2021.

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Distanásia, conhecida também como ‘obstinação terapêutica’ é a atitude que se traduz num excesso desproporcionado de respostas terapêuticas, que não acrescentam nada de significativo em termos de sobrevida à pessoa e que, pelo contrário, nomeadamente pelo seu caráter habitualmente invasivo, fazem acumular desconforto e, em regra, perpetuam sofrimento desproporcional. Não é punível por lei. É considerada má prática médica, no quadro da literatura académica e dos pareceres das Comissões de Ética para a Saúde.

Ortotanásia é o processo pelo qual um doente, livre e conscientemente, abdica de um conjunto de tratamentos que considera excessivos, desproporcionados, incapazes de lhe garantir um retorno eficaz, que se traduza numa melhoria efetiva do seu estado de saúde. Não é punível e é legitimada no quadro da literatura académica e dos pareceres das Comissões de Ética para a Saúde.

Cuidados Paliativos [de pálio, com o sentido de manto, cobertura] são uma especialidade de Saúde que se traduz num cuidado integral com a pessoa, lida como um todo uno, que é simultaneamente biológico, psicológico, social, afetivo, cultural, espiritual, contextual. São manifesta e lamentavelmente insuficientes no quadro do SNS e da resposta social e privada em Portugal. Dia 3 de fevereiro de 2021 foi aprovada na Assembleia da República um proposta do BE que promove um incremento transversal e amplo desta realidade em território nacional.

Diretiva antecipada de vontade, sob a forma de testamento vital e com nomeação de um procurador de cuidados de saúde, é um dispositivo legal que existe em Portugal desde 2012 e que consiste num documento, com necessidade de revisão e que forma parte de um registo nacional, onde cada cidadã/ao pode expressar aquilo que deseja e permite em termos de cuidados de saúde, em caso de fatalidade que a/o torne incapaz de formular uma opinião/decisão autónoma e consciente.

Alguma ‘casuística’, que não faz jurisprudência!

Se me perguntarem se deve ser punida uma opção como aquela que expressou Luís Marques e que a RTP deu a conhecer em setembro passado [https://www.rtp.pt/noticias/pais/linha-da-frente-mais-um-portugues-morre-na-suica-em-suicidio-assistido_v1259521], em tese e desconhecendo o contexto, só consigo responder que não. De modo semelhante, quando li o livro do teólogo Hans Hung, ‘Uma boa morte’ [Hans Kung, Uma boa morte, Ed. Relógio d’Água, 2017] não consigo não respeitar aquela posição e compreender a lógica argumentativa. Quero com isto dizer que a questão é complexa e tudo menos límpida ou dada a fundamentalismos seja de que espécie for.

Se me perguntarem se a lei portuguesa é sensata e parece bastante restritiva, tenho de concluir que sim. Ficam-me, ainda assim, algumas interrogações. Creio que confunde sofrimento com dor, admitindo a hipótese estranha de a mensurar… noutra pessoa. Duvido ainda que expressões como ‘sofrimento extremo’, ‘lesão definitiva’ e ‘gravidade extrema’ reúnam aquilo que a própria lei afirma ter de estar reunido e que designa como ‘consenso científico’. Mesmo a concetualização ‘doença incurável e fatal’ sabemos que, do ponto de vista científico, é, felizmente, uma expressão datada e circunstancial, que todos esperamos um dia ultrapassar. Neste sentido, parece um dispositivo jurídico com uma objetividade factual muitíssimo dependente de uma carga subjetiva, que só adensa a dificuldade do seu ajuizamento.

Acompanhei de perto centenas de pessoas em contexto de doença, escutando as suas angústias mais profundas. Escutei obviamente centenas de desabafos de pessoas convencidas de que ‘cá não andavam a fazer nada’ e que mais valia morrer. Escavando fundo, percebia-se que o que falhara não fora técnica, mas a humanização, o cuidado, a proximidade. Nunca vi outra coisa, exceto num caso, embora admita e respeite que haja. Ainda assim, parece-me bastante insuficiente e pobre como resposta de fraternidade social, que se acolha o desejo de alguém morrer como uma atitude que se deve ‘apenas e só respeitar’. Ainda que o desfecho venha a ser aquele com que não concordamos, a resposta que costumamos dar a um(a) amigo(a) que partilha connosco um passo que nos parece ‘menos correto’, não é o estímulo a que ‘vá em frente’. Pelo contrário, mostramos habitualmente outro caminho, advertindo que ‘estaremos com ele(a)’, seja qual for a sua decisão. Tive algumas pessoas que me pediram para segurar a sua mão, até que morressem…

Vivi recentemente de perto o fim de vida de duas pessoas a quem estava ligado por laços de sangue. Uma delas, não sei ‘porque’ morreu, porque não permiti [não tendo ela condições para decidir] que lhe fizessem um exame invasivo, que serviria somente para que se ‘saciasse’ uma curiosidade humana, uma vez que, dado o seu estado, não haveria nenhuma resposta proporcionada e significativa da medicina. A outra parecia querer morrer em casa. Um dia, os familiares diretos partilharam comigo que não suportariam viver no lugar onde essa morte acontecesse. Depois de saber isso, pedi-lhes que o trouxessem para o hospital ainda nesse mesmo dia. Deu entrada na urgência numa madrugada, onde o esperei já sem que ele me conseguisse falar, e morreu na manhã seguinte. Deixo esta nota apenas para advertir que a clareza concetual, seja de fundamentação mais ética, religiosa ou jurídica, habitualmente altera-se quando a proximidade nos toca na carne.

Uma convicção, um receio e uma interrogação.

Estou convencido que alguns votantes da lei votaram a favor por não concordarem com a distanásia e não por serem a favor da eutanásia, muito menos para os seus. Estou crente ainda que estarão empenhados em que se criem condições para o respeito pela autonomia dos indivíduos, mesmo e sobretudo daqueles que não pensem como nós. E com este princípio de não punir convicções muitíssimo pessoais, em tese, não consigo discordar.

Todavia, se do lado das perspetivas individuais consigo apelar para o respeito, do lado do dispositivo social que esta lei poderá passar a configurar só me vem receio. Socialmente temo a chamada ‘rampa deslizante’, fenómeno estudado que se carateriza por baixar progressivamente os critérios até à eventual normalização do que era outrora intolerável. Antropologicamente, temo que a liberdade individual seja elevada a valor absoluto [e único], porque não só não o é, como é muitíssimo difícil [impossível, estou em crer] o exercício de um verdadeiro ato livre, com ausência de quaisquer condicionalismos. A vulnerabilidade de uma pessoa é terreno fértil para a sua manipulação. Institucionalmente temo que se mine a relação de confiança que como comunidade estabelecemos com as Instituições de Saúde e que assenta no pressuposto de que servem para nos salvar a vida e nos restituir a saúde possível.

É preciso afirmar, contra uma cultura resultante nomeadamente de uma hermenêutica errónea do pensamento judaico cristão, que o sofrimento não é algo que se deva desejar. Nem como pedagogia de aprendizagem da vida, nem como condição de possibilidade da salvação. Mesmo assim, é uma evidência que o mal é um mistério que faz parte da Humanidade e da História, como realidades relativas, parciais, imperfeitas. Sabemos até que há muita gente que, mesmo no sofrimento mais profundo e sem motivações religiosas, consegue encontrar um Sentido que o faz superar essa realidade. Por isso, pergunto se do ponto de vista cultural e educacional não se estará a querer propor a ideia de uma vida com ausência de sofrimento, realidade que parece ser uma contradição lógica e uma impossibilidade existencial. A morte não pode permanecer silenciada, mas tem de ser integrada como parte da vida, porque morrer é só o modo como vivemos.

Luís Francisco Cordeiro Marques

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