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Já perdi a conta aos anos que ando a tentar dizer ao Latoeiro para vir remendar a caleira da água do telhado da casa, ainda por cima é por cima do quarto e fica aquilo a martelar a noite toda, se chove muito parece o inferno

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se chove pouco parece tortura

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ou então foram os pardais que fizeram os ninhos e entupiram a caleira, mas continuo a achar que a lata era de fraca qualidade e ao fim de meia dúzia de anos está podre e rota e não serve para o que a paguei ao tal do João Latoeiro, que ao fundo da rua da vila se acha uma instituição do tempo e do lugar, sobretudo depois de se ter “vendido” à politiquice e portanto ele agora é subsídios da câmara, ele é fretes aos tipos do partido, ele é tudo e mais alguma coisa, o homem foi-se martelando a si próprio, mimetizando o seu gesto de bater latas para delas obter as formas que queria, isto é, desisti de o chamar para me arranjar a caleira, ainda p’ra mais ele já sabe que não morro de amores pelos tipos políticos a quem ele beija a mão e de língua afaga as botas e só por aqui se percebe em como uma simples caleira rota se pode transformar num problema político, sim, claro e ainda mais se tiver em consideração a exposição que fiz ao engenheiro das obras da câmara chamando a atenção para uma desgraçada de uma valeta que manda a água da chuva para dentro do pátio de um vizinho meu que, coitado, não sabe escrever e lá me pediu que o ajudasse

– Tem de esperar porque os serviços camarários tem outras prioridades e ainda por cima, cada vez chove menos!

disse entre risos de escárnio o vereador na mesa do café onde se vem passear e receber os encómios, enquanto alinha copos de branco traçado na mesa e cavaqueia com os correlegionários do partido que controlam os habitantes do povoado

– Quem não é por nós é contra nós!

e por conseguinte a valeta a despejar água para o pátio do Albertino, com as galinhas de galochas sem por ovos, os dois patos e quatro gansos muito admirados com o seu potencial nadador, enquanto a mulher Benilde à janela, ajeitando os vasos pendurados, catando as ervas daninhas e alvitrando naquela certeza das leis

– O que eles querem é poleiro! Cambada!…

e contra o que disse o engenheiro das obras, o inverno está de chuva e a caleira rota a pingar a irritação num oleado que entretanto coloquei para desviar as águas

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enquanto com dois passos atrás fecha a janela, ajeita as cortinas e corre como pode para a televisão à força convocatória da gritaria da apresentadora que se fosse galinha cacarejaria mil ovos por dia ou espantava a vontade do galo e portanto se na capoeira alagada, atenuaria em grande estilo o prejuízo

– Ela é tão simpática que um dia gostava de lá ir nem que fosse só para bater palmas.

mas pronto, tive de desistir e tentar ir a outro lado a ver se arranjo quem me veja a caleira

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outro latoeiro que não seja sabujo ou se ande a vender aos tipos da câmara enquanto estes congeminam no café o futuro da terra

– Porque é que você não se inscreve no partido? Acabavam-se logos os seus problemas…

eu que nunca fui de me vergar ao que estabelecem como certo ou errado, só sei é que este rosário sem contas da caleira rota já me está a dar cabo dos nervos que até marquei uma consulta no médico e adivinho-o a dizer-me, por cima dos óculos e enquanto empunha uma caneta prateada pronta a desbobinar o receituário numa letra que nem ele percebe

– Você não pode tomar estes comprimidos com vinho!

e não tomo senhor doutor, juro que não tomo, quando muito vou à caleira rota com um copo e tomo com água da chuva que em princípio foi benzida por Deus Nosso Senhor e só por isso já devo ficar bom!

 

António Luís

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