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A Guerra Colonial durou cerca de 13 anos – mais do dobro da Segunda Guerra Mundial – mobilizou 800 mil portugueses para combaterem nas antigas colónias e também 500 mil africanos recrutados localmente, que foram incorporados nas tropas portuguesas. Fez milhares de mortos portugueses e africanos.

Desde o início do colonialismo europeu, o domínio do homem branco foi imposto a milhões de pessoas em todo o continente africano. Até meados do século XX, tinham cartões de identidade que os identificava como indígenas. Já não eram escravos, mas escravos continuaram. A Guerra Colonial teve início com um terrível massacre perpetrado pelo exército português a trabalhadores angolanos que entraram em greve, por serem forçados a trabalhar numa empresa no Norte de Angola, e que terminou na morte de 5 a 10 mil pessoas. É a partir daí, que o MPLA decide pegar em armas, para pôr fim à exploração e à coabitação forçada.

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Na Metrópole, quando os filhos eram mandados para a Guerra no Ultramar, as mães rezavam todos os dias à Nossa Senhora para os protegerem. Quando regressavam vivos, iam a Fátima, de joelhos, para agradecerem. Lamentavelmente, muitas mães recebiam a frieza macabra dos habituais telegramas do governo a dizer que o filho morreu em combate. E tremiam cada vez que viam o carteiro a aproximar-se… E os jovens habituados às lides do campo, muitos deles sem terem frequentado qualquer nível de ensino, deixavam as enxadas e iam ao encontro de uma guerra que não sentiam como sua e por conta de um fabuloso império que não era, seguramente, o seu, pois eram herdeiros de séculos de pobreza e miséria verdadeiras. Não temos que nos iludir sobre a justeza das guerras, pois todas são injustas e cruéis, mas esta foi tudo isso acalentada pelo bolor de um estado ditatorial, com os mandantes do regime a proteger os privilégios exorbitantes de uma elite que queria continuar a garantir as riquezas africanas em benefício próprio, e os jovens, que nada beneficiavam com a guerra, a morrer. Quanto ao povo português – que nada conhecia do império a não ser que lhes levou os filhos para a guerra – só tomará realmente consciência da situação quando, após as independências, centenas de milhares de retornados invadem este “óasis de paz” que era a terra lusitana.

A morte do Tenente Coronel Marcelino da Mata, o militar mais condecorado pelo regime de Salazar, tem sido objecto de tentativas desabridas de aproveitamento político, relançou o debate sobre a guerra colonial, trazendo de volta todos os fantasmas maléficos da nossa história e serviu como um pretexto para os muitos fascistas que por aí há, descalçarem “as pantufas dos reformados da história”, como dizia o grande Eduardo Lourenço. Na verdade, o que mais impressiona é que são muitos e alguns já vão na segunda geração. Nuno Melo, um estratega político, resolveu divulgar subtilmente que tem um mapa de Portugal e do seu império colonial emoldurado na parede e tratou de o exibir nas redes sociais. Noutros tempos, no CDS havia instruções explícitas para guardar os gritos de “Angola é Nossa” para momentos mais reservados.

Fachos: Volta para a tua terra!

Que é nossa! África é nossa!

Volta para a nossa terra!

Não, espera, há aqui qualquer coisa que não está bem…

Marcelino da Mata nasceu na Guiné, num canto recôndito do que era um grande império colonial, e serviu servilmente o patrão da guerra, o Estado Novo, com as suas qualidades militares dignas de melhor aplicação e que foram instrumentalizadas para fins de propaganda da ditadura. Foi chefe dos comandos africanos do Exército Português, um regimento que se notabilizou pelos massacres e torturas que infligiu às populações indefesas em diferentes países africanos, durante as suas lutas pela libertação, e cujas operações levaram à condenação de Portugal pelas Nações Unidas. A Guerra despoleta o que de pior há no ser humano. Mas, também na guerra, há limites para a conduta e maldade humana. E na guerra os verdadeiros actos heroicos não implicam exercer força desnecessária e cruel contra quem está indefeso.

Levar este santo no andor, porque combateu pela pátria, não esta pátria com democracia que temos hoje e pela qual lutamos, mas a ditadura feroz de Salazar, traduz, no mínimo, uma clara inversão de valores. O voto de pesar da morte de Marcelino da Mata pela Assembleia da República, a pretensa casa da democracia, expõe os fantasmas da guerra colonial e o racismo na sociedade portuguesa. A presença do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa nas cerimónias fúnebres do referido militar reforça o saudosismo colonial, naturaliza o discurso da extrema-direita e deslegitima as discussões sobre políticas de reparação que têm sido preconizadas pelo movimento negro antirracista em Portugal.

“Claro que no mais fundo de nós desejaríamos que esta versão idílica da colonização e não menos utópica da descolonização fraterna correspondessem à realidade. Que, sobretudo, não fossem mais uma demão (a última?) na imagem açucarada e sinistramente opressiva que os portugueses construíam de si mesmos e da sua História ao longo dos séculos. Acontece apenas que a mentira sobre nós mesmos nos corrompe a substância e nos rouba a verdadeira vida. Não temos depois do 25 de Abril desculpa alguma para nos mentirmos por conta de uma imagem idólatra, beata, de nós mesmos e menos a temos para continuar a alimentá-la à custa de mitos imperiais historicamente defuntos. […] O que tudo está pedindo é, com urgentíssima necessidade, uma “nova e radical leitura” […]” Eduardo Lourenço, 1984.

Dignificar e homenagear é preciso, sim, mas as memórias das vítimas do colonialismo. Nunca um herói de Guerra. Como vítimas foram todos os que, fosse como fosse e em que condições fossem, fizeram a guerra colonial, tanto portugueses e africanos, como todos os que, para nela não participarem, tiveram que desertar e exilar-se. Muita gente esteve envolvida e não aceita que tenha sido completamente em vão. Curiosamente ninguém quer saber dos milhares de mutilados de guerra, os deficientes das forças armadas (sem falar dos traumatizados de guerra) que, eles sim, merecem todo o apoio, pois foram vítimas de uma guerra absurda em tempo de descolonização. É curioso que ninguém fale das vítimas entre as populações africanas.

Na Europa, e sobretudo em Portugal – contrariamente ao que se faz por exemplo na Alemanha, em que se reconhecem publicamente as atrocidades feitas pelos nazis – continua a não se querer sequer fazer uma comparação entre o Holocausto e o colonialismo. Isto porque o primeiro é visto como um genocídio e o segundo como algo que no fundo “não foi assim tão mau”, justificando “nós até fomos bonzinhos para os africanos, depois de nós nunca mais conseguiram organizar-se”. Para os crimes do Holocausto foram criados tribunais internacionais, em que se destaca o Tribunal de Nuremberga (1945) para julgar, com lei retroactiva, os crimes da guerra finda. Na África do Sul, o arcebispo Desmond Mpilo Tutu presidiu a Comissão de Reconciliação e Verdade, destinada a promover a integração racial, após a extinção do apartheid. Esta Comissão tinha poderes para investigar, julgar e amnistiar crimes contra os direitos humanos praticados durante o regime do apartheid. Pretendeu-se confrontar culpados com depoimentos das vítimas, tudo com objectivo de sanar feridas abertas, reparar e reconciliar os povos.

Em Portugal, nada disso foi feito, os criminosos não foram punidos, as vítimas não foram ouvidas, assim como nunca demos voz activa às pessoas racializados que vivem no país, a maior parte já aqui nascidas, onde é suposto que estejam caladas e aceitar, em silêncio, uma condição de subalternidade e de invisibilidade, sem qualquer representação nas instituições sociais. A última emissão do “É ou não é?”, na RTP 1, o canal publico, foi um debate sobre racismo e herança colonial,  e num painel de 6 convidados contou-se apenas  a presença de um racializado – Mamadou Ba. Ao elencar a falta de representatividade e acesso a pessoas racializadas em vários domínios, este último pergunta: “quantos apresentadores negros há no canal público da televisão portuguesa?” O jornalista sorri e responde: “Temos muitos. Na RTP África!”

No lodaçal da disputa à mitificação de Marcelino da Mata, ouvimos responsáveis políticos e formadores de opinião activarem um ideário imperialista e racial, que se legitima a ameaçar e devolver à condição de inferioridade os traidores da pátria, neste caso o português, Mamadou Ba, activista do SOS Racismo. Não tenhamos dúvida de que as suas declarações públicas não suscitariam a pretensão de o expulsar do território nacional e de lhe negar a sua cidadania portuguesa se a cor da sua pele não fosse, em si mesma, alvo de uma discriminação negativa. E não foi o único a dizer o que ninguém pode apagar a propósito de Marcelino da Mata e dos seus crimes de guerra, mas também desse longo e duradouro crime que é o colonialismo, que oprimiu e exterminou milhões de negros.

A indignação suscitada assenta na sua condição de negro do activista e de, enquanto tal, ser um cidadão que ousa apontar a existência de racismo numa sociedade onde era suposto ele manter o silêncio. Ora, este não aceita o papel do “bom preto”, que muitos gostariam de lhe impor. E é isso que explica todas as violências e todas as ameaças de que ele tem sido alvo. E que, de resto, aparecem muitas vezes legitimadas com uma acusação perversa: “a de que é Mamadou Ba, ao falar de racismo, que suscita o racismo em Portugal”.

O ódio que se soltou, com a ridícula e inconstitucional proposta de deportação, mostra o desespero, mas também a incapacidade para instituir uma nova cultura democrática desvinculada da antiga cultura imperialista e colonial, demonstrando como a matriz da ditadura permanece hoje, de forma mais insidiosa ou exibida sordidamente, muito para além do colonialismo político. Desconstruir esses mitos históricos, combatê-los, superá-los: eis uma urgência da nossa democracia. Para isso, precisamos de muitas vozes dissonantes que, como a de Mamadou Ba, os contestem sem medo.

Estamos a atravessar um momento histórico particularmente penoso e difícil em Portugal e no Mundo. Há uns anos atrás, seria muito provavelmente impensável o aparecimento de petições a reclamar a expulsão de um cidadão português na plenitude dos seus direitos. No momento actual, a direita saudosista do Estado Novo e do colonialismo, está a perder a vergonha e a abandonar as tocas em que esteve, durante décadas, confinada. Felizmente, com a potencialidade para a barbárie, surge também a potencialidade para o progresso, sendo que também, neste tempo, muitos explorados, racializados e oprimidos levantam a voz e dizem basta.

Cabe-nos a nós, a todos aqueles que se preocupam com a decência ética e política do espaço público, estarmos atentos e não lhe consentir, a essas vozes e a esses elementos, um protagonismo incompatível com a existência da democracia. E de não deixar sozinhas pessoas como Mamadou Ba, que merecem a nossa consideração e respeito pela sua coragem e exemplo cívico – e mesmo quando deles discordamos num momento ou noutro.

 

Marília Alves

 

A foto de destaque foi obtida AQUI

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5 COMENTÁRIOS

  1. Vivemos num país que por mais defeitos que tenha, permite que se possam ler textos como este.
    Tendencioso, parcial e com mentiras suficientes para por um lado ser lembrado e por outro ser esquecido.

    • Não me parece que o cidadão Mamadou Ba seja um referencial ético, nem encoraje a esmagadora maioria do nosso povo com as suas referências á alusão á “morte do homem branco” e ao discurso da “bosta da bófia”; nem sequer ás declarações post-mortem sobre Marcelino da Mata. Numa guerra de guerrilha, a linha que separa o que é militar do que é civil está longe de ser consensual, e o teatro de guerra não é propriamente um lugar de diplomacias e salamaleques. É o lugar da sobrevivência, “tout court”.

  2. Inacreditável.
    Parece um texto retirado de um panfleto do Bloco de Esquerda.
    Mas é como diz o comentário da Ana Morais estamos num país livre e até os disparates tem o direito a serem escritos e lidos.

    • Milhões de negros foram e são vítimas de colonialismo precisamente por aqueles que encabeçaram a guerra de África e que se venderam aos soviéticos e aos americanos. Em vez de trazerem paz e prosperidade, levaram corrupção e guerras civis longas e sangrentas. Era para isto que queriam uma justa autodeterminação?

  3. A liberdade de expressão é só para que defende Mamadu.Os que são contra a verborreia do ativista, são fascistas Onde é que já vimos isto? Nos tempos das torturas do copcon e nos campos de José, o Estaline.

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