Andas sempre a queixar-te de que não chove, Aurélio, mas não levantas o rabo do sofá para ver a chuva que cai lá fora, quase indiferente ao teu ardente desejo de a ver cair, não percebes a incongruência da tua atitude, o desvio insanável entre o que desejas e o que não fazes para colmatar a falta, não queres mesmo saber da chuva que cai lá fora, contigo a desejar tanto que ela caia, mas daqui a pouco, quando o aperto da bexiga e a concomitante deterioração da próstata te obrigarem a outros caminhos
– Já não vais para novo, meu menino.
talvez te dignes a colocar a vista para fora da janela ou ir à soleira da porta da varanda e aí perceberes que, finalmente, chove, como tanto querias, como tanto te queixas, coisa em que, aliás, és o melhor perito, Aurélio, chegas ao cúmulo de te queixares de te queixares ou, quando nem tem lembras que te queixas, de te queixares de que não te queixas e a dada altura respiras queixas, comes queixas, bebes queixas, dormes queixas, sonhas queixas, acordas queixas, tomas banho em queixas, queixas-te do shampô
– Esta porcaria não me tira a caspa!
queixas-te, do gel de duche
– Esta treta deixa-me a pele gordurosa!
queixas-te da toalha
– Detesto o tecido destas toalhas! Arminda, compra mas é umas toalhas decentes que isto é uma porcaria, fico com a pele cheia de pelos e para pelos já me bastam os meus e pelos me farto de espalhar pelo chão!
e o tapete, Aurélio, o tapete
– Este tapete é reles, parece que nos fica agarrado aos pés, parece que tenho de andar sempre com ele pela casa, a pedir licença para me movimentar, irra!
e o exaustor de vapores, queixa-te dele, Aurélio
– Pois esse também é uma bela bosta! Só faz barulho, não chupa nada, estou na casa de banho e parece que estou dentro de uma nuvem, ou estou no alto da serra em dia de cacimba do oeste, não vejo nada, isto para além das manchas que ficam nas juntas dos azulejos e no teto… Chupa tão pouco que até parece que cospe vapor em vez de o chupar!
porque para ti, Aurélio, a incompetência está por todo o lado, na televisão, na rádio, nos jornais, nos políticos, nas coisas, pelo menos naquelas em que não tocas
– Essa cambada de parasitas. Todos!
mas se reparares, não consegues alinhar-me duas coisas que aches que estão bem, ou então talvez só o futebol do teu clube do coração, daquele por quem darias o rabo e um par de calças ou até a própria vida, o clube e o presidente que consideras mais santo que todos os santos
– Escreve-se Santo com “S” maiúsculo. Respeitinho!
tu que não punhas nem pões os pés em qualquer igreja, nas suas sombras interiores, nos seus silêncios e até gozavas com tudo o que tivesse a ver com santos, santinhos, devoções, padres, beatas
– Beatas, sim! Havia e ainda há algumas na aldeia, todas de negro, inclinadas para a frente, com crucifixos ao pescoço, devotas do Cristo e do Padre, bichanando as suas vidas de joelhos no chão…. Mas não te queixes, Arminda, pelo menos não te largo beatas pelo chão que bem sabes que deixei os cigarros há 12 anos.
e só a porcaria do futebol, até parece uma droga em que te meteste agravada agora com as apostas que te fazem estar agarrado numa curvatura de cervicais, ao ecrã do telemóvel, a seguir os jogos e a debitar palavrões e queixas da má sorte de um remate ao poste ou os centímetros do “respetivo” do VAR aplicado às leis do jogo
– Antes tivesses razão, Arminda, criatura! Como é que dizes uma coisa dessas em plena crise do vírus? Não há futebol, mulher! Não há futebol! Quer dizer, haver há, mas como não podemos ir ver no campo, é como se não houvesse…
mas não parece, Aurélio, não parece porque continuas a queixar-te de tudo e de todos e só me falta ouvir queixares-te de que o vírus nem contigo pega, excluindo-te à sorte de não saíres desse sofá há um mês nem para ir ver a chuva de que te queixas não cair e juro por Deus, homem, que não estou maluca, juro que ouvi uma pequena gota de chuva a perguntar-me
– Arminda, o Aurélio, está?
enquanto caía do céu e se pendurou, sem uma queixa, no ferro da varanda à espera que a vás ver.
António Luís