No sábado, dia 20 de março, um grupo de pessoas – os jornais falam em três mil – juntaram-se numa manifestação, em Lisboa. Não conheço as motivações de todos os intervenientes, mas muitos (provavelmente a maioria) serão negacionistas, se o entendermos como aqueles que, na linha dos movimentos “pela verdade”, negam as evidências científicas e contestam as medidas tomadas pelo Estado para reduzir os danos da pandemia. Assumo isto: os vários movimentos que usam o termo “pela verdade” são, sem qualquer dúvida, negacionistas. O “pela verdade” faz parte dos posicionamentos contra o confinamento, os estados de emergência, as máscaras, a mentira do coronavírus, as vacinas, a ciência, as farmacêuticas, os governantes, a democracia, etc., etc.
Este protesto foi replicado em várias cidades e um pouco por todo o mundo. Obedece, seguramente, a agendas políticas e sociais, e sucede quando o debate político e a opinião pública, em democracia, são desvirtuados por mentiras e manipulações, alimentando-se em informações veiculadas por correntes de desinformação e fake news que abundam nas redes sociais; por vezes extravasam para os meios de comunicação institucionais e suscitam o amplo apoio a teorias da conspiração e ao populismo. Naturalmente, que as pessoas continuam, em democracia, a ter direito a tais opiniões. Ainda que, pessoas com determinadas profissões/atividades mais delicadas, com ordens profissionais, e que não se inibem de defender publicamente e divulgar esses posicionamentos capazes de comprometer a saúde e segurança de outros, deverão imediatamente ser afastadas. Aliás, aconteceu esta semana com um Juiz, foi suspenso preventivamente das suas funções. A medida só pecou pelo tardiamente.
Voltando à manifestação: é um direito que não foi suspenso e podiam manifestar-se livremente. Bastava apenas o uso da máscara e distanciamento social para se cumprir a Lei e apesar da clara dissonância cognitiva da grande maioria daquelas pessoas, que exibiram cartazes com preciosidades tais como: “Sim à verdade, liberta-te!”, “Transforma o Medo em Amor”, “Constituição onde estás?”, “Costa e Marcelo nos vemos em Nuremberg”, “O amor e a verdade vencerão”, “Não à vacinação experimental! Não somos cobaias das farmacêuticas”. E apenas uma certa noção pública de que era um “bando de chalupas” é que não gera mais polémica, pois, caso contrário, julgo que não seria tão fácil aceitar que as autoridades não tenham sido firmes. Aliás, a polícia fez “vista grossa” e, até custa a acreditar, mas nas imagens divulgadas estão todos encostados uns aos outros, só faltou fazerem comboio. Um Estado de Direito regula-se por leis e estas são claras e é um imperativo que sejam respeitadas. Figuras públicas e anónimas, facilmente identificáveis, exibem-se (orgulhosamente) a não cumprir a Lei. E consequências? Zero. Mas depois assistimos a casos de pessoas que apenas por estarem na rua são multadas.
Esquece-se que o desconfinamento do Natal e Ano Novo, deu origem a um surto que atingiu 158,9% de casos de infecção por cada 100 mil habitantes. Agora estamos em 4,4 % de casos. Não queremos que se repita, um novo surto, tal como aconteceu ou já está a acontecer noutros países, como na Republica Checa, que já vai em 3 grandes surtos que atingiram mais de 120% de casos de infecção por cada 100 mil pessoas. A Alemanha já está a ponderar adoptar medidas para um novo confinamento. A saúde está primeiro. O vírus mata mesmo. Não são opiniões, são factos: há já quase dois mil mortos. Estas pessoas podem representar novos contágios e novos mortos.
Os negacionistas têm o direito de fazer a sua manifestação, mas têm o dever de cumprir a legislação em vigor. Ao não o fazerem, estão a aproveitar-se de um direito democrático, mas afrontando a ciência e, o que é mais grave, o Estado e a cidadania. E isto não é limitar a liberdade a quem não está de acordo. Estas pessoas não se manifestaram pela liberdade ou democracia: ao negarem o respeito pelas normas de segurança, demonstraram que apenas se manifestaram a favor de um mundo muito próprio, infestado pelos demónios das suas crenças e delírios. Sobrevivem e usufruem de um mundo altamente científico e tecnológico, mas renegam as mais básicas e elementares regras do bom senso e da razão. E a democracia exige responsabilidade pela vida dos outros.
Volto a sublinhar: não é cortar a liberdade a quem não está de acordo. É, antes, deixá-los manifestarem-se no estrito cumprimento das leis que são obrigatórias para todos. A manifestação que ocorreu foi só um espectáculo lamentável. De ignorância e arrogância, que normalmente andam de mãos dadas. A ideia de que temos que ser tolerantes com os disparates é um erro. Já é tempo de acabar com essa postura e seguir os ensinamentos de Karl Popper, “não podemos ser tolerantes com os intolerantes”, que usam as liberdades conquistadas para colocar a saúde, a vida e a liberdade de outros em risco.
Sendo certo que prometeram voltar daquele sábado a quinze dias.
Marília Alves