Hoje da Serra saem palavras que gostaria de não deixar sair porque me doem. Antes de mais quero pedir desculpa por cansar vossos olhos com a minha dor. Mas preciso. Preciso de gritar e preciso de ser ouvida. O meu marido morreu. Deixa-me dor que, espero, evolua para saudade. Mas também me deixou uma alegria imensa. Foram muitas as fontes dessa alegria, e muitas se prendem com livros, os que me foi colocando à volta; os que nos divertimos, os dois, a comprar; os que me pediu para ler e fazer a sinopse alargada, porque queria saber o conteúdo, mas sem lhe apetecer ler; os que leu de enfiada depois de saber a minha opinião.
Ontem, quando regressei para velar o seu féretro, um nadita antes das 8 da manhã, olhei para a foto linda que tirámos num momento fantástico nas varandas de Budapeste. Naquele momento de solidão olhei para a foto e espreitou na minha mente um título de Sándor Márai, “As velas ardem até ao fim”. Não resisti. Fotografei a fotografia e fiz uma coisa tão contra os meus costumes, fiz uma publicação no Facebook. Naquele momento senti, mais do que nunca, que o meu marido foi, e será, uma vela que brilhou, e brilhará, nas noites mais escuras.
Foi diagnosticado em 2016 com uma doença de esperança média de sobrevida de 9 meses, viveu com ela durante 4 anos, 8 meses e 13 dias. E juro que não sobreviveu, Viveu!!!, foi feliz, foi alegria. Fez 5 cirurgias e de todas se ergueu com garra e vontade de mais um dia, fez inúmeros tratamentos diferentes e sempre entrou nas salas de tratamento com boa disposição que contagiava os outros doentes e dava alento ao pessoal, que por trabalhar num ambiente tão duro, aproveita todas as migalhas de felicidade dos seus queridos doentes. A equipa do S. Jerónimo, que acompanhou parte do nosso percurso, sempre tratou o meu marido com uma ternura que nunca pensei encontrar em desconhecidos. Entrei lá a primeira vez esperando não ter mais do que profissionalismo e fomos recebidos com carinho, ternura, compaixão, esperança e alegria. Nos últimos anos, o S. Jerónimo nada nos podia oferecer e ficamos com a equipa dos Lusíadas e, uma vez mais, o que sentimos foi muito para além do exigido a excelentes profissionais. Esta equipa fez questão de frisar o quanto o meu marido marcou, pela positiva, os doentes e o pessoal daquela sala, a força que deu a tantas mulheres que já só tinham fraqueza, o ânimo que deixou onde o desânimo era rei e senhor há demasiado tempo. Por tudo isto, e juro que é pouco o que consigo aqui deixar, preciso de gritar ao mundo o quão grande foi o meu homem.
As velas ardem até ao fim
As velas ardem até ao fim foi um livro que me caiu no colo só porque sim (deve ter sido a minha querida minorca…) mas de leitura sôfrega. É uma narrativa parada de dois velhos, mesmo velhos, que em tempos foram os melhores amigos e que a vida separou durante 40 anos. A ambos o afastamento marcou, doeu. Será ao longo de um jantar no castelo, outrora deslumbrante de aspecto e de vida, que o motivo desse afastamento vai ser revelado, numa conversa que aparenta nunca mais terminar. Vidas serão desfiadas pelos dedos da memória destes anciãos e a trama desconhecida do seu afastamento será composta.
Daquilo que li de Márai, atrevo-me a afirmar que os sentimentos e as relações entre pessoas marcaram a vida e a escrita deste húngaro para quem o exilio foi a única forma de viver com a dignidade que lhe parecia adequada.
Boa semana com livros!!!
Anabela Bragança