A Páscoa, mesmo se cultural, não é ‘fofa’. Coelhinho e chocolates são enfeites mercantilistas, com lugar, mas longíssimo do centro, razão de ser e sentido. A cruz não é adorno cosmético, mas apontador contraditório de crueza e luminosidade, em simultâneo. Fala de um crucificado concreto, com nome e história, e permite que falem os crucificados contemporâneos, de quem esquecemos o nome e a história e cujas cruzes e calvários tantas vezes requintamos, em registo de desculpabilização dos escândalos de indignidade que, como Humanidade, continuamente a perpetrar. Grandes e pequenos. A cruz, contraditoriamente, veicula igualmente a palavra de ânimo e alegria, de emancipação e liberdade, de entrega e não resignação. Não é poesia, mas existencialidade que nos desafia a experimentar, com contributo protagonista, que aquilo que cabe no rótulo de ‘mistério do Mal’, não só não compensa, mas também não vence.
Mesmo se culturalmente apenas, que é o que nos importa aqui, valia a pena, por honestidade e curiosidade intelectual, revisitar o Sentido [ético?] maior deste tempo.
Talvez eu ainda continue a escolher ‘Barrabás’, no meio da gritaria ensurdecedora e manipuladora das opiniões. Porque me é mais cómodo e conveniente. Por estratégia e esperança de retorno. Porque sim, porque outros dizem e alinho acriticamente no que as ‘pseudo maiorias’ impõem. Frequentemente, ainda permitimos a dormência da vida, numa espécie de alucinação coletiva que inverte valores e não cura a comunidade da esquizofrenia da ‘quezília gratuita’, do culpabilização fácil, do ‘trincheirismo rídiculo’, disfarçado de democracia, que se foca nos fins sem se deter a avaliar o meios.
Talvez eu permaneça agarrado à tentação de fazer dos outros ‘bestiais e bestas’ à velocidade da luz. Ora aclamando e aplaudindo, ora condenando a diversas mortes. Consoante pensem como eu ou discordem de mim. Com a desfaçatez de prosseguir a ‘assobiar para o lado’, indiferente ao dito e escrito, desculpado com o ‘calor do momento’ ou auto desculpado com a agenda pessoal ou corporativa.
Talvez eu traia e negue, depois de dizer que daria a vida, ou fuja para ‘salvar a pele’, para não ‘sobrar para mim’ ou para não ter nada a ver com aquilo que pressinto que possa correr mal. Se, por um lado, ‘somos humanos, demasiado humanos’, por outro, este é também o tempo do desafio à coerência, à fidelidade e à verticalidade. Antes de mais, para comigo mesmo. Para que isso seja alavanca para, se necessário, pedir desculpa e experimentar o perdão, inspirar ânimo para expirar entrega, experimentar comunhão nas convicções e na fraternidade. E a vida ser grande, por dentro e por fora.
Talvez me custe ainda viver a partir da mesa fraterna, onde a fração do pão se desmultiplica em vida entregue, ou resista a sujar as mãos a ‘lavar os pés’ encardidos pela dureza da existência e a injustiça da falta de oportunidades. Têm de existir ceias grátis, sempre primeiras e não últimas, originais e únicas, onde todos possam estar ‘sem dinheiro nem despesa’. Onde a ementa essencial, ‘gourmet de elites’ ou ‘farnel de colcha de retalhos’, são as pessoas. E onde todos comem, sem liturgias de cerimónia. E é daqui que vão sempre brotar os futuros renovados. Onde, de ‘rins cingidos’ e ‘toalhas atadas’ às cinturas saramos as feridas uns dos outros, limpamos o ‘caruncho’ que nos mata sem nos regenerar e não descansamos enquanto nas ‘encruzilhadas dos caminhos’ permanecerem ‘aos caídos’ os caídos que pensam não ter [e a quem o Sistema nega] lugar na refeição. Porque fazem desta o lugar dos ilustres e dos santos, dos puros e bem comportados, dos ‘amigalhaços’… Este tempo subverte e faz do que está no nojo o centro, ensinando que é por aí que se começa. Sem lirismo ou categorias teóricas que enchem as retóricas de ocasião, mas a sujar as mãos. Menos que isto, é passar ao lado.
Provavelmente, preciso da experiência de remover as ‘pedras grandes’ que me encerram em sepulcros nada luminosos. Mesmo os cegos tateiam e teimam em ver. Não querer ver, equivale a ficar aquém nas possibilidades. Convém que não esqueça que as ‘pedras grandes demais’ apenas na solidariedade se removem. Vale a pena experimentar. É o mínimo, para dormir com tranquilidade.
Provavelmente, persisto na procura no lugar errado ou evado-me da realidade, absorvido por um céu feito contemplação que ‘dispensa’ ação. É um ‘espiritualismo’ que não é [ainda] espiritualidade. Esta reclama corpo e chão, pele e carne, tempo, história e Eternidade como antecipação e apelo. Procurar a ‘coisa errada’ no ‘lugar errado é uma dupla fragilidade. Correr atrás do que vai adiante e nos puxa para a frente é que faz sentido. Descobrir isso é o mais difícil e o verdadeiro segredo.
Provavelmente, não escuto o anúncio à vida redimensionada, que se esconde no convite simples de ‘pôr as mãos nas chagas’ ou de ‘comer alguma coisa’ nas mesas humildes ‘de poucos pães e peixes’. Buscar o grandioso é uma atitude que esconde o simples. É uma anestesia cultural que este tempo pascal convida a reequacionar. Inclinar mais a vida, dobrar a coluna, significará escutar mais, parar mais, silenciar mais. Para crescer melhor, criar comunidade melhor, servir melhor. Talvez não seja popular, mas a Páscoa desafia a começar pelos últimos.
Provavelmente, atenuei a capacidade de me entusiasmar e entusiasmar outros, optando pelo conforto de um ‘cenáculo’ alcatifado e pronto, aparentemente seguro e onde parece existir o mínimo. Mas o que nos salva são os horizontes máximos! As salas são o lugar onde, em regra, decidimos a vida que acontece nas ruas. Este tempo convida a mudar o critério e a estratégia. O imperativo é a rua, alicerçados numa convicção [que é experiência e não teoria], impelidos pelo entusiasmo da afetividade fraterna, mas descentrados em quem reclama a nossa entrega, porque carece de ver restituída a sua dignidade.
Luís Francisco Cordeiro Marques