Publicidade

Bonnie Finney, uma avó norte-americana, em 1989, colocou uma fita azul na antena do seu carro. O seu neto morrera, brutalmente espancado pela mãe e pelo namorado. Para esta avó, o azul simbolizava a cor das lesões e perpetuava a memória do seu neto [e de outros ‘netos’], ao mesmo tempo que constituía uma alavanca para estimular o apoio às famílias e às comunidades, no sentido de concretizar todos os esforços possíveis na prevenção do abuso e da negligência na relação com as crianças. O gesto teve uma repercussão inimaginável para a protagonista, ganhando amplitude mundial, a ponto de transformar abril no mês da prevenção dos maus tratos infantis, com o azul como cor de fundo.

“Serei o que me deres…que seja amor”, é o slogan da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, estrutura nacional que se descentraliza até às CPCJ [Comissão de Proteção de Crianças e Jovens] concelhias. A lógica de raciocínio é simples e centra-se na dedução que faz ‘o futuro decorrer do presente’. As crianças de hoje são os adultos de amanhã e aquilo que semearmos será o que viremos a colher. No fundo, é sempre de educação que se fala, o mais importante de toda a ação política.

Na mensagem de abertura das atividades de 2021, a Ministra Ana Mendes Godinho rotula os maus tratos a crianças de “flagelo incompreensível”, estimulando ao investimento na sensibilização, que comprometa a comunidade inteira, na prevenção, que leia os ‘sinais’ e faça o seu devido discernimento, e na intervenção, assertiva e competente, quando a situação o reclama.

Entre nós, ao senso comum quotidiano, estes casos de abuso infantil podem ainda parecer coisa longínqua, novelesca e sensacionalista. Escandalosos e repulsivos quando, a espaços, acontecem. Mas pouco mais… Este talvez seja um primeiro mito que urge desconstruir. Vai longe o tempo, mesmo no espaço rural, da brincadeira de rua ser o paradigma do divertimento, numa intergeracionalidade ‘normal’, salutar e vigilante. Nesse quadro, a exposição pública era significativamente mais transparente para as relações estreitas de vizinhança. A digitalização contemporânea da existência amplificou o espaço das relações, mas também as afastou da proximidade, além de ter ‘codificado’ a sua linguagem tornando-a inacessível a muitos dos próximos. Por isso, repensar a paisagem natural e edificada tem de ser, neste quadro, além de um ato estético com alcance funcional, também uma atividade humanizadora das relações sociais.

Uma outra desconstrução que terá de ser operada é aquela que faz equivaler e circunscrever maus tratos a crianças a classes sociais menos favorecidas. Desde logo, porque ser desfavorecido não constitui uma escolha. Depois, porque a negligência, a desumanidade ou a violência de qualquer tipo não têm nenhuma genética especial, a não ser a da ambiguidade da fragilidade humana, que a todos nos constitui e marca. Finalmente, porque a tendência para ‘adocicar de erudição’ alguns comportamentos de ‘elites’ não é senão um provincianismo parolo. Um ‘bebedeira de tasca e vinho fraco’ não é nada de distinto de uma ‘bebedeira de bar e bebida fina’, só para citar um exemplo prosaico.

Um terceiro mito que urge banir da sensibilidade cultural é aquele que subscreve que o abuso ou a violência educam. A probabilidade de um ato violento se replicar em violência é significativa. E aqui estão em questão práticas educativas privadas informais e empíricas, processos educativos mais formais, ‘rituais’ de inserção em contextos de grupos, ‘receituários’ solucionadores de conflitos, moralismos de vária ordem e maternidade/paternidade diversa… A intuição de fundo é mesmo que ‘quem semeia vento, colhe tempestade’.

A campanha deste ano centra-se na primeira infância, com o tema “Cuida bem de mim… os desafios da primeira infância.” O esforço talvez resida no envolvimento de agentes institucionais e informais da sociedade civil, fazendo deste um desígnio da comunidade inteira [e de cada um em particular] e não uma simples emanação descendente de quem tem responsabilidade e obrigação decisória. Os decretos mudam pouco ou nada, enquanto não se tornam cultura e sensibilidade social. As reações interventivas são necessárias, e habitualmente urgentes, mas de pouca eficiência se são só dissuasoras e não educativas. Talvez sejam mais baratas e mensuráveis e um dos problemas pode ser este. As ações de impacto mediático e de conjugação de multidão são balão esvaível e espuma se não atingirem a interpelação pessoal.

Em cima da mesa tem de estar o desafio da reflexão e da investigação, da convocação da academia e dos saberes científicos em geral, apesar e por causa da complexidade que o tema encerra. Pensar em conjunto marca a agenda e cria hábito. À política o que é da política. Mas a decisão apartada do estudo e da técnica é autista. E, naquele, como deixar de fora as humanidades e a estética em geral, por exemplo. É de priorizar a educação que se trata. E, aqui, os indicadores mensuráveis no ‘excel’ são apenas uma forma de ler a realidade, enviesada ainda por cima, como tudo aquilo que é parcelar.

O tópico da atração de modelos inspiradores, de práticas de cuidado e educação tem igualmente de ser tido em conta. Sem ‘quintais herméticos’, é no exercício laboratorial da excelência adaptada a cada realidade que ‘o mundo pula e avança’. O digital gera hoje conexões inimagináveis e incomensuráveis, que combatem a tacanhez da insularidade auto e hétero imposta. Mas se a rede não começa na vizinhança real e se circunscreve à virtualidade, algo vai mal na tal ‘aldeia inteira’ de que se necessita para educar uma criança.

Como denominador comum, estará a nota da transversalidade deste tema. No contexto da educação infantil, ninguém – indivíduo ou instituição – fica de fora, nem alguém tem a prerrogativa da exclusividade das boas práticas ideais. Colocar tudo em função disso seria um projeto estruturante de comunidade. Este é um esforço de coligação, que tem de ser o resultado dos pontos de chegada da disseminação de uma cultura de cuidado por toda a sociedade e dos esforços concretos que esta for sendo capaz de ir fazendo. Pintar o território de azul não é uma ocasionalidade protagonizada por un[s] – pessoa ou instituição -, mas a relação sistémica de todos os empenhamentos pessoais na criação de ambientes saudáveis, como condição de adultos saudáveis, como condição de futuro.

Luís Francisco Cordeiro Marques

Publicidade

Artigo anteriorAs palavras que descem da Serra: A Vida Mentirosa dos Adultos, de Elena Ferrante
Próximo artigoReembolsos do IRS começam a chegar à conta dos contribuintes a meio desta semana

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui