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‘Sermos uns contra os outros’ é talvez a pior perversão do abril que queremos celebrar. ‘Converter’ no ‘terreno do adversário’ é talvez o maior sinal de pequenez do projeto social que queremos protagonizar. A ‘tentação sebastiânica’, nas mais diversas formas e por mais instantânea que seja, é talvez a maior traição ao ‘sangue derramado’ de que agora podemos beneficiar e de quem ninguém é dono. É sobre estas três ideias e suas ramificações locais que me proponho refletir alto.

Regressa ao espaço público, com a amplificação do digital, o arremesso bélico de um ‘ódio de estimação’ que parece desejar que os diferentes terminem. Mesmo e quando apregoamos os valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Com isto apenas se pode preconizar um pensamento único, um modo de fazer exclusivo, uma concentração de inteligência e criatividade numa ‘qualquer fação’, elevada, por esse facto, a realidade absoluta. As configurações deste ‘estado de coisas’ vão dos poderes partidários às dinâmicas associativas, passando pelos lugares de cultura e pelas latitudes geográficas.

O campeonato da ética e da honradez é um ‘jogo estranho’ para o tabuleiro da vida pública. O escrutínio é condição de possibilidade da democracia, mas colocar em causa a dignidade humana de outro é argumentação para se esgrimir em sede jurídica, não no terreiro comum. É insustentavelmente pesada uma sociedade da ‘quadrilhice infantil’, onde o argumento primário do ‘quem diz é quem é’ constitui o recurso retórico mais ‘sofisticado’ dos protagonistas. Defrontamo-nos na causa pública como se estivéssemos a definir a lista de convidados para o nosso aniversário, onde, felizmente, por razões de sanidade pessoal e social, não vai nunca toda a gente. Enquanto não estiverem em jogo ideias/projetos, convicções/lógicas de pensamento, objetivos de médio/longo prazo, enredamo-nos numa lamacenta mesquinhez onde todos perdemos. Nesta altura andamos todos entretidos, sobretudo os ‘peões dos regimes’ ou os ‘descomprometidos’, a ‘atacar’ o perfil do adversário, com rótulos feitos de ‘lugares comuns’ e atoardas superficiais disfarçadas de humor barato. Perda de tempo, desperdício de energia e forma sem conteúdo.

‘Converter’ no ‘terreno do adversário’ significa que vivemos num pequeno aquário, autistas em relação ao mundo que nos rodeia, esquecendo uma parcela significativa da população que já damos por perdida, porque ‘não se mete nisto’. Os poderes, uma vez mais todos eles, precisam de exercitar a arte da convocação. E tamanha técnica pode exigir, no limite, capacidade para ‘sair de cena’, expondo quem está à possibilidade de ser ultrapassado. Com este ‘medo’, a opção passa frequentemente por arrebanhar os séquitos mínimos, que diminuam as possibilidades dos imprevistos incontroláveis. E nas diversas trincheiras, a prática não diverge na substância. Viver na espiral habitual deixa morrer os autóctones e barra a entrada a outras espécies, enfraquecendo o ecossistema e fazendo temer pela sua validade. Também sob este prisma se podem ler atividades partidárias, associativas, sócio-solidárias, culturais, religiosas… Em nome do cuidado com um pequeno quintal, abdica-se do emparcelamento social e concorre-se com a pequena cultura do vizinho, estragando inevitavelmente ambas. Não é preciso grande intuição sociológica para perceber que este ‘modus operandi’ desmobiliza a massa crítica pensante, que, felizmente, tem ‘mais que fazer’ e não quer jogar esse jogo menor. É a montante que é preciso mexer, sendo que as parangonas que proclamam a necessidade de implosão do regime são apenas e felizmente ruído poluidor e inconsequente. Estamos muito melhor. A crítica tem apenas a ver com a visão parcelar transformada em absoluta.

O discurso mais patológico é sempre o de fazer da sociedade uma espécie de ‘rancho folclórico gigante’, tirando uma fotografia num qualquer passado tido como perfeito e propondo esse modelo para o presente. Multiplicam-se os exemplos de exercícios de manutenção, que, mais que manter a realidade tal como está, querem, sim, eternizar os protagonistas. As desculpas são várias, mas, invariavelmente, fazem aparecer os protagonistas como heróis, mártires e insubstituíveis. Evidentemente que o futuro se constrói em cima de camadas de passado. Mas este tem de ser olhado saudavelmente, com memória, reconciliação e discernimento crítico. A reposição por si mesma, sem a marca criativa da nossa atualidade, é um anacronismo e uma impossibilidade. Absolutizar uma perfeição teórica, que ainda por cima nunca existiu, inviabiliza a construção lúcida do presente e do futuro. Nem fugas para a frente, nem fugas para trás são caminhos saudáveis de construção do que temos de ser.

Os rostos de Abril não se mobilizaram por pormenores. Esses até parece que se foram superando muito na base da improvisação. As grandes questões da identidade e do sentido maior da existência é que fizeram alguns dar a sua vida. É aqui que temos de voltar. O resto cansa e desmobiliza.

Luís Francisco Cordeiro Marques

 

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