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António Barreto, conhecido intelectual e político da nossa praça, veio por estes dias, em entrevista ao Jornal Sol, afirmar que “A justiça do antigo regime era mais séria do que a de agora”. Por antigo regime entenda-se salazarismo. Possuíamos então um estado regulador até ao mais ínfimo pormenor, tribunais plenários, com uma justiça arbitrária, com a qual parece agora concordar e isso define logo uma pessoa do ponto de vista ideológico.

A justiça era exercida através de um aparelho repressivo e controlador assente numa legião de pides e de bufos. Sem esquecer as simpáticas prisões para os presos políticos, em que o pináculo da seriedade era o Tarrafal. Tudo muito sério e com pessoas de bem. E foi essa justiça “tão boa” que obrigou Barreto ao exílio dourado da Suíça. E, contrariamente, à esmagadora maioria das pessoas da sua idade, que nada beneficiaram com o regime e se sujeitaram a perder a vida numa luta inglória, uma guerra sem vencedores nem vencidos, enquanto a burguesia abastada –  como é o caso e com muitos princípios declarados após a revolução, porque até aí não tinha tido qualquer intervenção politica conhecida – saiu do País e respirou liberdade, muito antes de ela cá chegar.

Enquanto ministro da agricultura do primeiro governo de Mário Soares, António Barreto acabou com a reforma agrária. Quem não se lembra da “Lei Barreto”, que determinou a entrega dos campos do Alentejo aos proprietários. A manhã sangrenta da reforma agrária, ocorreu em Montemor-o-Novo, quando a GNR atirou aos trabalhadores que contestaram e morreram dois, Caravela e Casquinha. Julgo que a frase “Fora Barreto”, continua gravada em alguns muros. Pelo menos, no das memórias. Entregou novamente os latifúndios que não foram alvo de qualquer melhoria. Passou de uma situação anárquica para outra de fraca produtividade. E a seguir vieram as políticas agrícolas comuns e os fundos comunitários, com os quais os latifundiários aproveitaram para comprar condomínios de luxo em Lisboa, jipes e outro material de alta cilindrada, e nada apostaram na sofisticação agrícola, que acabou por ocorrer só após a construção da Barragem do Alqueva.

No Alqueva, começou-se por construir aldeamentos turísticos e outros equipamentos associados. Depois instalaram-se os espanhóis e outros para praticarem uma agricultura intensiva e usufruírem de água em abundância e ao preço da chuva. Não veio para trazer o progresso. O plástico das estufas começou a matizar a paisagem protegida da Costa Vicentina, enquanto a exploração laboral de milhares de migrantes afrontava os direitos humanos mais básicos. Aliás, os mesmos direitos que eram afrontados no tempo em que Barreto dizia que a justiça era mais séria e os trabalhadores eram locais. Sabem as pessoas explorados na agricultura desta região. Como sabem todos os habitantes de um Alentejo que assiste à predação dos recursos pela produção intensiva, ao corte das linhas de água e à destruição dos solos. A exploração das pessoas e dos recursos pode ser uma mina de ouro para os patrões que fazem do uso e abuso a razão do seu lucro fácil, mas é um entrave ao desenvolvimento sustentável do Alentejo.

Os empresários agrícolas dizem sem hesitar: “Não há disponibilidade de mão-de-obra portuguesa para este tipo de trabalho”. Disponibilidade há, desde que sejam pagos condignamente. Essa é a questão. As pessoas que caíram nas malhas do tráfico humano, com esquemas que começam pela angariação de pessoas em países, na sua maioria asiáticos (designadamente Nepal e Bangladesh), marcados pela fome e miséria extremas,  sob a promessa de conseguirem o seu sustento e das respetivas famílias, acabam por aceitar pagar à cabeça a estes angariadores (autênticas máfias de seres humanos, que proliferam como cogumelos) quantias elevadas ( entre os 10.000 e os 16.000 €), ficando acorrentados por dívidas para o resto das suas vidas.

Trata-se, desde logo, de uma mão-de-obra que não reclama, quer por necessidade (porque quando a miséria é extrema, até a pobreza parece preferível), quer sobretudo por medo de retaliações (já que a maior parte é ilegal) e, mais do que isso, as máfias esclavagistas não hesitam em ameaçar e coagir quem não cumpra com as suas exigências. No Alentejo, em particular na zona do Alqueva, mas também no Ribatejo e no Oeste. Para já não falar da restauração em certas zonas do País, de Lisboa até ao Algarve. O crime de tráfico humano é o maior negócio deste século. E Portugal é um paraíso para ele.

Estes novos escravos são integrados em actividades (como as estufas), que usam intensivamente o solo, com jornadas de trabalho extensas, mais de 12 horas diárias, com temperaturas que chegam perto dos 50º, a troco de salários (se é que se pode falar em salário) muito baixos. Empilhados em contentores ou em “habitações” sobrelotadas e sem as condições mínimas de higiene e salubridade, que já tinham conduzido a níveis elevadíssimos de doenças infecto-contagiosas (como a tuberculose), que eram perfeitamente conhecidas das entidades prestadoras de serviços da segurança e da saúde no trabalho, existentes na área.

Tudo o que se vem a passar e vem sendo dito a propósito da situação dos trabalhadores agrícolas estrangeiros no concelho de Odemira, que a pandemia veio desnudar, parece concentrar o que pode haver de pior e de mais hipócrita na espécie humana, muito em particular quando se trata de pessoas que têm responsabilidades públicas ao mais alto nível: desde a indiferença cúmplice do Governo, do SEF, do Presidente da CAP e até à inqualificável posição assumida pelo Bastonário da Ordem dos Advogados, existe uma panóplia de (in) responsáveis, cujos princípios e conduta são ética e moralmente abjectos.

António Costa disse publicamente que existe nestas estufas “uma gritante violação dos direitos humanos”. Tem razão. Mas, ao dizê-lo, omite que foi o seu Governo, por resolução do Conselho de Ministros de 2019, que determinou que é possível encaixotar 16 pessoas num contentor pré-fabricado, no âmbito de um “regime especial e transitório aplicável ao Aproveitamento Hidroagrícola do Mira”. Isolados das povoações mais próximas e sem acesso aos equipamentos sociais, alojaram-se centenas de pessoas em beliches com quatro pessoas em cada quarto, solução que afronta os direitos mais básicos. Enquanto isso tivemos uma Cimeira Social para mascarar politicas anti-laborais e dar um colorido acompanhado de atractivos adereços, seja o designado modelo social europeu ou a carta dos direitos fundamentais.

Mais recentemente, Costa foi a Odemira e levou boas notícias: acabou a cerca sanitária e os escravos podem voltar ao trabalho a tempo de os empresários terem quem lhes colha os abacates e os frutos vermelhos, que são símbolos da “modernização da nossa agricultura”, e como disse o outro alguém, também membro do governo. E, quanto às “degradantes condições de habitação”, o Primeiro-Ministro levava dois protocolos para encontrar uma solução para substi­tuir os contentores transformados em habitações, por algo mais condigno, ou seja, mais próximo de uma habitação.

As “casas” vão ser pagas com verbas da “bazuca”’ e com outros dinheiros públicos — ou seja, na totalidade ou em parte, os contribuintes vão assumir/custear a responsabilidade social e humana e os lucros vão para estes bem-sucedidos empresá­rios da agricultura intensiva. O que não se pode deixar de considerar um avanço significativo e se considerarmos que, ainda há pouco, o Ministro da Administração Interna e a Secretária de Estado da Imigração (esta última, até aqui ninguém sabia da sua existência, apenas da sua folha de remuneração) garantiam que Odemira era um caso exemplar de humanidade e integração de populações migrantes.

Tudo isto é um autêntico cabaz de fruta podre e é também isto que nos faz voltar ao início deste artigo. Ou seja, ao barrete no Alentejo, que mais não é que o oportunismo associado ao modelo político-económico agrícola adoptado na região, em que há empresas aparentemente impunes, quando no resto do país não podem funcionar dessa forma e são sancionadas se o fizerem. E quem são estes empresários para não serem alvo da mesma actuação por parte das autoridades do trabalho e da justiça? Trata-se, mais específica e essencialmente, de um problema político e, claramente, de tráfico de influências. Só a essa luz é que se pode explicar que haja impunidade. Porque até agora “nem um se sentou”, enquanto os dirigentes políticos que –  em nome do alegado desenvolvimento económico e dos grandes interesses egoístas – desviam a cara para o lado e fingem não ver como seres humanos são assim destratados num País que tem uma das maiores taxas emigração da Europa.

Marília Alves

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