Hoje da Serra partem palavras de José Rodrigues dos Santos, escritas antes de tornar a sua produção literária uma fábrica de série ilimitada, com uma produtividade exorbitante. Confesso que já deixei de ler este autor há algum tempo, e confesso também que alguns dos seus livros são absolutamente maravilhosos. É um daqueles autores que desprezo e aprecio. Estas manias de leitor são estranhas e bizarras para a maior parte mas existem em todos nós, leitores de continuidade. A saga Noronha é uma miséria literária, e estou a dar forte no eufemismo, no entanto a revisão científica é credível e vale a pena ler por isso.
A leitura de A filha do Capitão acordou em mim memórias velhíssimas, memórias tão antigas que são já nostalgia pura. Lembrou-me o ti Francisco. O Ti Francisco era meu vizinho. Era um velhinho (pelo menos para mim, que deveria ter uns cinco anos menos uns trocos) muito característico. Tinha uma perna esquerda normal e do lado direito tinha uma perna de pau (sem qualquer analogia com o meu gelado favorito!!). A vida do Ti Francisco era muito difícil. A falta da sua perna impossibilitava-o de ter qualquer utilidade e condenou-o a uma dependência de terceiros aviltante. O Ti Francisco era fumador mas não tinha dinheiro para cigarros. Não tinha dinheiro para nada… A minha imensa disponibilidade de tempo fez com que me ensinasse a colher a barba de milho na altura certa para ele secar com esmero e cuidado, seria o seu tabaco para a maior parte do ano. Quando chegava a altura de colher o milho (na minha terra diz-se descamisar) ensinou-me a escolher as folhas (camisas) que poderia usar como mortalha. Quando o meu pai regressou do Ultramar , sempre que arranjava tabaco, tanto podia ser Português Suave sem filtro como Kentukis ou Provisórios, mandava-me levar um ou dois macitos ao Ti Francisco. Assim que lhos dava o senhor acendia logo dois com o mesmo fósforo, um para ele e outro para mim. Os meus pais nada sabiam disto, e hoje tenho a certeza que o doce e inocente velhinho achava que estava a fazer algo bom e a demonstrar a imensa gratidão que sentia. Estes presentes, que dependiam sempre da disponibilidade do mercado, eram a sua maior alegria, muito maior do que o rancho fortalecido que a minha mãe me mandava levar para mitigar a fraqueza da sopa de sempre. Hoje sei que os meus pais ajudaram a mitigar as fomes do Ti Francisco, até a de calor humano… Um dia resolvi perguntar onde estava a perna faltosa, “Deixei-a na França…”, logo lhe garanti que haveria de a ter de volta, “ A minha mãe vai já escrever ao meu tio e ele traz-ta!” não sei se nesse dia havia cigarro ou só uns dedos de conversa mas lembro-me de atravessar a rua das Ginjeiras, onde morávamos frente a frente, e berrar a plenos pulmões para a minha mãe mandar vir a perna esquecida que tanto carregava no alembramento do Ti Francisco, “Vai já escrever ao tio para ele trazer a perna do Ti Francisco que ele esqueceu-se dela na França!”. Um dia o que restava do Ti Francisco partiu, foi em busca da sua perna perdida mas nunca esquecida… Em mim ficou isto, e mais umas coisas muito boas da minha meninice.
José Rodrigues dos Santos
A filha do Capitão
“A vida é realmente um caldeirão de mistérios, a começar pelos mais simples, pelos mais ingénuos e inocentes, por aqueles que estão na génese da nossa existência.”
SINOPSE
Neste romance cruzam-se muitas histórias. Todas partem da mesma personagem – o Capitão Afonso Brandão. O narrador conduz-nos pela vida desta personagem dando-nos a conhecer pormenores do quotidiano dos portugueses do fim do século XIX e do princípio do século XX, bem como o quotidiano dos soldados portugueses nas trincheiras franceses.
Inicialmente vamos conhecer a vida de Afonso, o seu nascimento, a sua infância e a sua primeira paixão. É neste momento que a vida de Afonso começa a sofrer grandes mudanças pois a mãe da sua amada não quer para genro um pé descalço e consegue enviá-lo para um seminário. Nem Afonso se torna padre nem a paixão morre. Então resta fazer dele alguém menos mau partido – é enviado para a tropa para se tornar oficial. Esta última decisão da “possível sogra” vai virar irreversivelmente a vida de Afonso, conduzindo-o até ao amor da sua vida.
O momento mais intenso da narração decorre em França durante a Primeira Guerra. Ficamos a conhecer as miseráveis condições de vida dos portugueses nas trincheiras da Flandres. No cenário de guerra a fama dos portugueses é péssima, são considerados burros e sobretudo muito porcos, são muito pouco respeitados pelos restantes e mesmo pelos oficiais de comando (nacionais e estrangeiros). Os relatos da sujidade, da fome e do frio são aflitivos. Para além dos soldados alemães os ratos são o outro grande inimigo a abater sendo veículos de doenças, e ladrões de coisas tão simples como pão ou eventualmente um dedo de um pé mais desprevenido…
Paralelamente a esta história de miséria é-nos contada uma outra muito grandiosa e bela – o grande amor que nasce e cresce entre Afonso e Agnés – uma bela francesa dona de uma coragem incrível e de uma tenacidade capaz de a fazer ultrapassar todos os obstáculos.
Boa semana com livros!!!
Anabela Bragança