Acabei. Agora mesmo. Estava a ver que não conseguia terminar em tempo útil. Foi uma maratona, algumas coisas (ditas muito importantes, como lavar loiça!!!) ficaram por fazer mas valeu a pena. Terminei a saga de verão. Provavelmente no próximo ano cá voltarei, mas deixarei os vossos olhos longe destas minhas manias. Esta semana ocupei-a, em termos literários, com o mais volumoso e também o mais divertido da saga do Cemitério dos Livros Esquecidos. Costumo ler com um cadernito e uma caneta por perto para ir apontando umas coisas, durante anos fi-lo nos livros. Um dia apercebi-me que esse comportamento poderia ser pouco recomendável, sobretudo quando se emprestam os livros. Tomei conhecimento disto quando a Lú, a doce Lú, me disse que a primeira coisa que fazia nos meus livros era ler as minhas notas. Fiquei lisonjeada, claro, mas percebi que essas notas podem estragar o prazer a quem vai ler. Esse novo leitor tem o texto, que deve ser só seu pois foi escrito para ele, e tem as notas de outra alma que teve de facto um texto só para si. Estas notas vão alterar o encontro sagrado entre leitor e livro, vão tirar a magia ou pelo menos encurta-la ao novo leitor. Desde então tento que as minhas notas sejam vertidas num caderno ou outro suporte não estruturante do livro. E porque falo disto? Desta vez, que penso seja a terceira que leio este livro (cheio de notas…) tenho muitas páginas do meu caderno com indicações de citações fabulosas, referencias aos dislates do meu adorado Fermín e gargalhadas épicas em determinadas páginas (este é, para mim, o mais delicioso dos quatro romances que constituem a obra).
Para muitos leitores a ordem de leitura adequada será a cronológica, não partilho dessa opinião. Para mim a ordem mais prazenteira de leitura é a de publicação. O primeiro volume dá-nos uma perspectiva global, o ultimo permite-nos atar todas as pontas (algumas “à volta de alguns pescoços”…) mesmo as que desconhecíamos estarem soltas. O O Jogo do Anjo é, na minha perspectiva, o texto mais pérfido, tem uma multiplicidade contínua que permite a cada leitor escolher o final. Confesso que tenho variado a escolha… O O Prisioneiro do Céu permite-nos conhecer melhor a personagem mais deliciosa de sempre, o querido e feio Fermín. Conhecemos um homem leal a si, aos seus amigos, ao saber e aos livros. Com uma verborreia capaz de arrancar gargalhadas aos mais sisudos, consegue safar-se de situações impossíveis, afinal até da morte se viu livre… Este último livro, O Labirinto dos Espíritos, que hoje vos deixo, é um peso pesado, tanto em páginas, 845, como em conteúdo. São postas a nú as almas, as máscaras são removidas e o pior e melhor de cada um é exposto. A narrativa é como as anteriores: densa, leve; colorida, de um negrume assustador; límpida, embaciada; perfumada, fétida; alegre, tenebrosa. O contexto histórico politico-social é umas das marcas mais profundas deste(s) romace(s). O oportunismo politico, que caracteriza todos os regimes mas se torna mais evidente em ditaduras, é encarnado pelos Valls e Ubachs de serviço. Os titereiros não são esquecidos perfeitamente caracterizados na personagem Leandro. A policia, tal como a PIDE portuguesa, limpa o espaço e o tempo de todos os indesejáveis a quem manda, nada de novo. A novidade está na escrita apaixonada, no policial envolvente, nas descrições que funcionam como um monstro devorador que nos sorve para o interior do livro e só a forças muito superiores, com motivos de força maior, cede a nossa saída. Todo os livros giram à volta de … livros e seus autores, da força das palavras para o bem e para o mal, da intimidade da relação que se estabelece entre um livro e o seu leitor e da importância que a palavra tem na construção da memória. Vou-me calar, se tivesse erudição e sentido de humor refinado poderia dizer que pareço o Fermín, sim porque o narigão tenho!!! Só mais uma coisita, este livro tem algumas gralhas de tradução. Uma delas é particularmente divertida, a tradução de Cerbéro para cérebro…
Esta semana as palavras a correr da Serra são de O Labirinto dos Espíritos de Ruiz Zafón.
Carlos Ruiz Zafón
O Labirinto dos Espíritos
“Feche os olhos e respire fundo três vezes. Sem pressa, como se os pulmões lhe chegassem aos sapatos- aconselhou Fermín- É um truque que me ensinou um monge tibetano, malandro como só ele, que conheci quando trabalhava como recepcionista e contabilista num bordel portuário.”
“-Nada como a química para domar a lírica.mas não se habitue, porque a bebida é como o mata-ratos ou a generosidade, quanto mais se usa menos efeito faz.”
“-Não se preocupe que eu tenho mais vidas que um gato.
-E menos vergonha que um ministro,…”
“ O virar de casacas, tradição muito arraigada no solo peninsular, atingia níveis de filigrana.”
“ Um criado limpava copos atrás do balcão sem mais companhia do que um rádio e um rafeiro meio morto onde nenhuma pulga tocaria nem que lhe pagassem.”
“ O tempo, compreendeu, flui sempre à velocidade inversa de quem o vive.”
“Mantenha a massa testicular afastada do leme e chegará a bom porto.”
Sinopse
O texto começa como nascimento do pequeno Julian e as angústias do seu adolescente pai. Fermín está presente para dar os conselhos sábios de um homem do mundo e garantir que não serão duas as fraldas a ser mudadas. Ultrapassados os primeiros medos Daniel veste o melhor que consegue o seu papel de pai- menino e até se vai sair bastante bem.
Neste tomo surgem personagens novas (inicialmente senti alguma dificuldade em enredá-las) Vargas e Hendaya, ambos policias, o último um sacana do pior, aprendiz do maldito Fumero. O primeiro já foi de tudo, por agora é bom tipo, pena não se ter arrependido disso… Leandro Montalvo, dirige uma organização mais ou menos clandestina que vai garantindo a limpeza de espaço que o regime tanto valoriza, é mentor de Alicia Gris. Esta é uma sobrevivente das noites de raides da aviação italiana sobre Barcelona com características que fazem dela a melhor operacional de Leandro. Tem uma lesão de guerra que lhe dificulta muito a vida mas tem outras que lha facilitam, nomeadamente uma vontade férrea e uma resiliência e tenacidade a toda a prova. Mauricio Valls é o principal vilão nesta que é uma história cheia deles. Todo texto gira à volta do seu desaparecimento, de necessidade de o encontrar e dos crimes que cometeu enquanto era aspirante a homem de letras na prisão de Montejuic. A subida foi enorme e a queda tremenda. Daniel quase sucumbe à sua sede de vingança, mas o bom senso prevalece.
Os caminhos dos Sempere cruzam-se irremediavelmente com os de Valls pela mão de Isabella, a aprendiz de romancista de David Martin, o escritor que deveria ter dourado a esteira literária de Valls, a quem faltava a chispa para ser quem queria mas sobrava ambição, cobardia para agir na sombra e ganância.
Alicia, feitio terrível e uma fama ainda pior, e Vargas são obrigados a trabalhar juntos e acabam por formar uma dupla extraordinária que desmonta um quebra cabeças tão intrincado que obriga a voltar algumas páginas atrás com frequência. Pelo meio voltamos a encontrar Armando o Cigano, que Alicia, debaixo de alguns vapores químicos, tenta seduzir; Julian Carax, que não consegue estar quieto; David Martin que mesmo morto não pára e um escritor do mesmo tempo de Montejuic, Victor Matix, que assume papeis muito importantes na vida de Valls e do seu falecido amigo “Banqueiro da Pólvora”.
O final é doce e surpreendente.
Boa semana com livros!!!
Anabela Bragança
PS: Saber que não haverá mais obras deste autor é triste, se alguém o conheceu por minha causa e gosta de literatura juvenil existem mais uns textos que valem a pena, O Príncipe da Neblina (3 volumes) e Marina, pra a além de uns contos editados depois da sua morte.