Imagino João Rendeiro em Belize: com a mariconera debaixo do braço, cheia de notas, e tal-qualmente Ricardo Salgado quando de férias na Sardenha, enquanto estava a ser julgado em Lisboa. Ambos fazem parte da mesma clique, em que a justiça é inepta, e continuam a usufruir do dinheiro que se apropriaram de forma fraudulenta.
Rendeiro foi fundador e administrador do Banco Privado Português – BPP, tornando-se detentor de uma fortuna incalculável. No seguimento da falência do Banco e do designado Caso BPP, foi investigado pela prática de diversos crimes, entre eles burla, fraude fiscal, abuso de confiança e branqueamento de capitais. Resultou um contacto forte com a justiça, com vários processos ainda em curso e já três condenações: uma de 10 anos, outra de 3 anos e 6 meses, e a terceira de 5 anos e 8 meses, todas com pena de prisão efectiva.
Nesta última condenação, antes do trânsito em julgado da sentença, Rendeiro pega no seu passaporte e viaja até Londres, aliás para onde ia regularmente. Indicava como morada a Embaixada Portuguesa naquela cidade e sem que alguém, alguma vez, tenha verificado a que correspondia. Certamente, por ser uma “pessoa de bem”. Desta vez, planeou tudo, meticulosamente, para não voltar a Portugal, onde tinha uma pena de prisão para ser cumprida e outras em vias de o serem.
Um voo privado levou-o de Inglaterra a Belize, um simpático país à beira do mar quente das Caraíbas, paraíso da alta criminalidade financeira e da lavagem de dinheiro. E o Panamá ali tão perto, onde terá escondido – pelo menos parte – do produto da burla, ou seja, os milhões de euros tirados ao banco e aos seus clientes. Milhões que foram colocados em diversas sociedades offshore, tendo constituído, pelo menos em duas, como seu representante o advogado e comentador da SIC, José Miguel Júdice.
Há 191 países no mundo sem acordos de devolução dos criminosos a Portugal. Rendeiro tinha muito por onde escolher. Escolheu Belize, que, alegadamente, era o destino que lhe ofereceria melhores garantias de não extradição. Isto tudo ocorre assim, na dependência da sua vontade. Sem qualquer impedimento, controlo ou verificação para um foragido da justiça. Exactamente o contrário do que acontece com um cidadão comum em iguais circunstâncias. A pergunta que se exige que seja respondida: porque é que teve um tratamento diferente de 90 por cento dos criminosos que chegam ao sistema judicial? E, para acabar como começou, o mandado de detenção internacional para pedir a sua extradição, foi incorrectamente preenchido, mais um indício que pode levar a pensar que “há uma mão por detrás do arbusto”.
Por seu lado, na última comunicação no seu blogue Arma Crítica, Rendeiro diz que não volta. Algo saberá que nos falta. “Sinto-me injustiçado pela justiça do meu país. Tentarei que as instâncias internacionais avaliem o modo como tudo se passou em Portugal”, escreve. Quem se sente injustiçado recorre da decisão. Foi o que João Rendeiro fez. Durante dez anos, as condenações que tem correram todos os patamares possíveis da recorribilidade, chegando ao Supremo Tribunal de Justiça e ao Tribunal Constitucional.
O condenado tão habituado que está a viver com privilégios até quer um privilégio legal instituído só para si. Os seus recursos financeiros permitem-lhe tudo, contando com corrupção moral de responsáveis directos do sistema judicial. É aqui que reside o verdadeiro privilégio da total impunidade de alguns ricos e poderosos. Tudo isto tem a ver com a administração da justiça em si. Não tem a ver com a lei, mas com a sua aplicação material, porque os instrumentos legais existem e são usados na esmagadora maioria dos casos do cidadão comum. Ou seja, tudo isto tem a ver com os aplicadores da lei e com olhos que vêem de acordo com o estatuto socioeconómico do arguido.
O que choca é o sistema continuar imperturbável como se isto fosse normal, escudando-se no silêncio e em argumentos processuais que não foram responsáveis pelo que aconteceu. Numa democracia é exigível que os responsáveis dêem explicações claras e se os houve – que os há seguramente – sejam identificados e sancionados. Se a justiça trata de uma forma mais suave um indivíduo que rouba milhões do que o que rouba um milhão, só nos pode levar a crer que há corrupção, pelo menos intelectual. E que é, se calhar, a pior. Porque não é visível, nem controlável, nem exteriorizada de nenhuma forma. Faz parte da estrutura intelectual de quem decide.
A anatomia da fuga consistiu em o condenado em três processos, não todos transitados em julgado, durante o decurso dos mesmos viajava para Inglaterra com autorização e regularidade, o que é de todo invulgar em arguidos com a mesma carga processual. A morada indicada, como já foi dito, mais não era do que a Embaixada Portuguesa em Londres. Como é possível que pessoas com treino e experiência de anos, não viram neste arguido o mesmo que vêem num pilha-galinhas, o qual habitualmente aguarda os termos do processo em prisão preventiva? Este é, aliás, um dos grandes problemas da justiça portuguesa, porque, aparentemente, o sistema judicial não olha para a sociedade como acontece nos países desenvolvidos. Ou seja, com generalidade e abstração que é o mínimo exigível a um sistema judicial justo.
O privilégio é só para alguns e a justiça não quer incomodar o senhor. Ora, o senhor tem já três condenações e mantinha como medida de coacção o termo de identidade e residência. Por princípio, nada contra. Estas medidas são de prevenção e não devem ser condenações prévias. Mas as medidas de coacção têm em conta o risco de fuga e, não menos importante, a facilidade de fuga. Com condenações, em três processos diferentes, e com meios quase ilimitados para fugir, como é possível que Rendeiro tenha sido sequer autorizado a sair do país? Mais grave, ainda, como é admissível que tivesse o passaporte na sua mão?
E, sem qualquer problema, prepara-se agora para usufruir dos milhões ganhos a enganar outros, muitos dos quais – entre eles emigrantes – passaram uma vida de dificuldades e de trabalho para assegurar uma reforma melhor e assim num ápice ficaram sem nada. A fuga de Rendeiro é um insulto a todas as pessoas lesadas, ao Estado, às dificuldades da grande maioria dos portugueses, que pagam impostos para que a justiça exista e funcione de forma justa. E não é um caso isolado da justiça que não funcionou. Tivemos casos no passado, temos no presente e, parece-me que, no futuro, não faltarão outros.
Marília Alves