A Igreja, ao longo dos séculos, sempre foi um mundo de silêncios: muitos dogmas, segredos cobertos por panos brancos, pendericalhos, incensos e abanos. E saliento, desde já, que sou católica e acredito em Deus e na Igreja, o que não significa que não tenha posição crítica sobre o terrível flagelo que é a pedofilia e o abuso sexual de crianças e adolescentes por parte de padres católicos.
O Papa Francisco fala abertamente sobre o pecado dos sacerdotes, sobre o diabo que quer destruir a vida da Igreja. Como é justo que seja. Mas falta uma palavra. A palavra “crime”. Sim, não é pecado da pedofilia. O homicídio também é um pecado, mas é um crime grave, e, no mundo todo, quem mata acaba na prisão. Quando falamos de abuso sexual contra menores por parte dos sacerdotes católicos estamos a falar de crimes, não de pecados. É necessário que fique claro.
Surgiu a público, no início do passado mês de outubro, um inquérito encomendado pela Igreja Católica Francesa em 2018, que descobriu que o seu clero abusou de 216 000 crianças desde 1950. Tratam-se de duzentas e dezasseis mil crianças, vítimas de 2900 a 3200 abusadores. É fácil fazer a média: são 11 crianças abusadas por dia durante 70 anos … A Igreja não conseguiu prevenir e relatá-lo na época. Estou especialmente curiosa sobre o que vamos encontrar no nosso próprio país, Portugal, bem como em Espanha e Itália, os principais países católicos.
Sobre os abusos sexuais na Igreja Católica Portuguesa, a Conferência Episcopal respondeu, no imediato, que até estaria disposta a criar uma comissão se o resto da sociedade também fosse escrutinada. Todavia a Igreja, pilar de valores e da rectidão moral para milhões de pessoas, não se pode utilizar deste vil argumento para menorizar a sua culpa e a sua responsabilidade. Até que a generalidade dos elementos da sociedade não tem batina para se esconder debaixo.
A lição que aprendemos – de todos os países do mundo – é que um longo silêncio pode esconder os maiores crimes de abuso. E a Igreja, ao longo dos séculos, serviu-se sempre do silêncio para oprimir as vítimas e encobrir os abusadores. As principais tácticas de encobrimento utilizadas: transferir o acusado para outra paróquia, culpar as vítimas e as suas famílias, e pagamentos secretos pelo silêncio. Também recorre à manipulação psicológica das vítimas, culpando-as pelo sucedido, ameaçando-as para não avançarem com denúncias, dizendo-lhes “que seriam castigados e iriam para o inferno”.
Imaginem o que significa para a criança vivenciar essa experiência com alguém que deveria ser para a própria um exemplo de vida.
Debaixo da capa do celibato podem-se encobrir sexualidades mal-resolvidas. Violações, abusos e humilhações a crianças fazem parte de perversões sexuais. E é certo que os actos de pedofilia e abuso não ocorrem na calada da noite, numa rua deserta. Os abusadores precisam de ter acesso à intimidade da vítima e à confiança das pessoas em volta. Por isso aparentam ser pessoas sérias – afinal, quem vai confiar o filho a alguém que pareça um… pedófilo?
Os abusadores são, em geral, ou do círculo familiar – pai, parentes, vizinhos – ou profissionais sérios e, como tal, insuspeitos, com livre acesso às crianças e posição de responsabilidade. Incluem-se professores, instrutores de acampamento, líderes religiosos. Os padres. Muitos desses homens eram vistos como pessoas espirituais, bem-sucedidos e dedicados à sua paróquia. E é, exactamente, a imagem de pedófilos como pessoas sinistras que facilita que os abusos sexuais permaneçam indetectáveis por muito tempo.
No caso da Igreja, toda a instituição, ao longo dos séculos, teve falta de punição. Os líderes locais da Igreja abafam os casos, deixando os abusadores livres da Justiça comum dos homens. Livres para continuarem a praticar os abusos. E as vítimas sofrem sozinhas, em silêncio, no silêncio sofrido de quem viveu o horror e tem demasiado medo, culpa ou vergonha para pedir ajuda, quanto mais justiça. As vítimas são escondidas, abandonadas, ignoradas, porque colocam a Igreja perante o espelho e mostram-nos uma estrutura, onde há lugar para o horror, para a violência, para o abuso sexual de crianças e adolescentes.
No dia 11 do corrente mês de novembro, um mês depois da Igreja Católica Francesa ter anunciado os resultados do relatório acima mencionado, a Conferência Episcopal Portuguesa, certamente sentindo-se pressionada por aquilo que aconteceu em França e noutros países, pelos jornais e opinião pública, alterou o seu posicionamento inicial e anunciou a criação de uma comissão para investigar a questão dos abusos sexuais em Portugal. A decisão surge depois de uma reunião que decorreu em Fátima, com a Assembleia a criar uma “comissão nacional para reforçar e alargar o atendimento dos casos e fazer o estudo em ordem ao apuramento histórico desta grave questão”. Foi, para isso, constituído um “ponto de escuta constituída por leigos em várias áreas do Direito, Psiquiatria e Psicologia”.
Depois disto, só me ocorre partilhar uma oração do Papa Francisco: ´A ti, Senhor, a glória, e a nós, Senhor, a vergonha.´