Já não consigo contar os textos que escrevi sobre a Língua Portuguesa. São muitos, mesmo, que sou moço torrão. A falta de domínio que tenho sobre Ela e o permanente desejo que me transmite, incitam-me a passar horas à sua volta. É muito fugidia, a danada. Obriga-me a ginástica de pormenor e, inspirado, a filigrana maior. Contorno regras, torneando frases. Procuro palavras das menos fugazes. E não tenho fases. Escrevo-lhe sempre. Diariamente. Com o entusiasmo dos principiantes e a cegueira dos amantes. Exultação diligente, tão típica do metódico demente. É tamanho vício, que tenho gaveta cheia deles. De textos, insisto. Gaveta grande e bonita, com ares de pretensiosa, como se quisesse virar grandiosa. Acontece que não. Não é grandiosa a minha gaveta. Nem para lá caminha. Mas está cheia, sim. Tão cheia, que transborda. De curvas e trejeitos. De palavras com sons suspeitos. De reflexões infantis e até de versos mal feitos. Guardei-os, com todos os defeitos. Tantos… Vou calcando e calcando, que sempre cabe mais um. É difícil de engavetar, a minha língua. A nossa língua. Nossa é como quem diz, que não se entrega sem exigir continuada atenção e aturada dedicação. Daí gostar de me fazer a ela. Quanto mais me humilha, colocando-me no meu lugar, mais me atiro. Até que, quando percebe que estou por bem, lá me deixa espreitar. Entrar um pouquinho nos seus recantos. Aí, aproveito e brinco, que não sou tolo, comendo tudo a que tenho direito. Estico-me, enrosco-me… Cheiro-a, lambo-a…. Devoro-a, pois claro. De todas as maneiras e sem muitos maneirismos. Até me lambuzar. Sim, lambuzamo-nos muito, que sei bem que Ela gosta. Não sei é tudo quanto gosta. Mas vou aprendendo. Estou sempre a praticar, insisto. Não resisto. Sobretudo quando a vejo aborrecida, por não lhe tocarmos onde merece. Diz que quase adormece. Queixa-se, insaciável, que não vamos ao fundo da sua essência. Sublinha, inconsolável, que só lhe conhecemos metade da existência. Tem partes escondidas. Tantas! Só os mais atentos as descobrem, fazendo-a tremer de felicidade. Daí tamanha vaidade. Pois que a goze, com autoridade. Quem nos permite léxico tão sortido, deve exigir que o exploremos, com o acerto devido. É brilhante a nossa Língua, quando está feliz. Brilhante e expansiva, como o universo. Não cabe numa gaveta.
José António Duarte