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No livro que Luís Pais Amante[1] consagra à intemporalidade da terra onde se encontram as raízes motivadoras do seu fazer poético, depara-se o leitor com um poema que o autor intitulou «O vale inspirador e o olhar», no qual rememora a mágoa de ter vivido um «tempo cruel d’outrora», segundo as suas próprias palavras. Esse tempo cruel, que começa por ser um tempo subjetivo e íntimo, pode confundir-se com uma realidade política e social cuja má memória muitos ainda podem testemunhar, quanto mais não seja através das páginas da História recente. Voltando ao poema, parece-nos inegável que a contemplação do horizonte a uma distância significativa, não apenas do ponto de vista da distância espacial mas também do tempo e da memória, não se limita ao olhar fortuito de um caminhante ocasional. Estabelece-se, entre o observador e a linha do horizonte, um indeterminado e multímodo feixe de emoções. A emotiva contemplação da paisagem e da linha do horizonte que a circunscreve permite ao observador empreender, não apenas uma estreita harmonia com o mundo, mas também alcançar a possibilidade de fazer uma leitura particular do Universo, graças aos vasos comunicantes que se estabelecem entre o ser poético e o carácter inefável que essa mesma paisagem assume perante o olhar do observador. Trata-se da reinvenção ou da conversão de um novo olhar sobre o mundo, o qual acaba também por se converter num novo mundo. E é justamente a partir desta leitura particular que começa o fenómeno poético, ou a poesia propriamente dita: sempre envolta no mistério onde se esfumam as emoções e a memória, a inaudita memória que é a chave de todo o conhecimento. Referimo-nos ao conhecimento poético, o verdadeiro conhecimento do mundo e da vida que está para lá da objetividade científica, aquele que faz de cada homem um poeta: um novo poeta que enforma também um novo homem.

E, para que possamos justificar e compreender esse «novo homem», poderíamos citar uma frase de Vergílio Ferreira na qual nos revela que «cada homem é sempre o primeiro homem»[2], como se em cada novo ser se radicasse o princípio do mundo perpetuamente renovado. Olhando para a grande poesia portuguesa do século XX, também um poeta como Miguel Torga comunga desse mesmo princípio nas páginas da sua extensa autobiografia, pois podemos considera-la como um romance autobiográfico[3], obra na qual assume a revelação do ser poético enquanto nova criação do mundo, pelo menos do seu mundo interior, o que não deixa de ser, na verdade, um novo mundo, tal como a virtualidade e o humanismo presentes na sua obra nos demonstram. Identificamos nesta atitude criadora de Torga a realização do princípio fenomenológico de Heidegger[4], o qual enuncia o real enquanto experiência particular da humanidade. De facto, a origem do conhecimento radica-se, não apenas na profunda contemplação das coisas, mas sobretudo na sua representação particular e, por isso mesmo, virtual, sujeita a uma necessária abstracção do juízo, representação que se realiza através de uma interacção muito próxima do homem com o real. Essa interacção com o mundo não deixa de ser uma experiência poética, a qual se manifesta em cada ser humano, até mesmo para aquela parcela da humanidade que sente desprezo pela poesia e ódio pelos poetas. Todo o homem, por menos que o queira, é um poeta à solta; mesmo que não saiba escrever um único verso. É neste sentido que uma personalidade marcante na cultura europeia, como Hölderlin, nos diz que «é poeticamente que habitamos o mundo, ou não o habitamos»[5].

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Poderá esta afirmação tão categórica e radical, diríamos, formulada por um poeta europeu que viveu na complacência romântica do século XVIII, ter algum significado no imaginário do homem contemporâneo?

Não temos uma resposta definitiva para esta questão pois o domínio da arte poética é o da imponderabilidade, esse lugar instável e indefinível onde os poetas vivem, talvez o lugar mais próximo desse maravilhoso Olimpo onde os deuses greco-latinos habitam. Podemos dizer, não menos poeticamente, que os poetas e os deuses possuem um entendimento comum, uma vera camaradagem, pois, como nos diz Camões através das palavras de Afonso Lopes Vieira, «eu obedeço a outros deuses»[6]. E essa obediência manifesta-se de muitas maneiras, seja através do humanismo pagão seja através da manifestação do humanismo cristão, este último tão pródigo na história da poesia europeia.

À semelhança de Camões, também os poetas do presente obedecem a outros deuses e flutuam nesse espaço imponderável que se situa entre a mais profunda melancolia e a esperança mais arrebatadora. Se a melancolia é provocada pelo sentimento da saudade, a esperança no futuro manifesta-se através da contemplação desse horizonte longínquo ao qual nos referimos no início desta reflexão, contemplação significante baseada na crença de um tempo que há-de vir: o tempo esperançoso do Bem, da Beleza e da Verdade, esse mesmo tempo pelo qual Sócrates, através das palavras de Platão[7], também suspirou e calorosamente aclamou antes de beber o cálice envenenado da cicuta.

É na instância apaziguadora dessa beatitude que a saudade portuguesa se manifesta e se consuma por inteiro no domínio do poético. É justamente a partir do sentimento da saudade, sentimento ancestral na poesia portuguesa desde o século XII, como melhor nos demonstrou Carolina Michaëlis de Vasconcelos[8] antes de qualquer outro estudioso português, que o gesto poético se confunde com o tempo. Esta relação, a todos os títulos inseparável, entre a poesia e a saudade enquanto representação do tempo, imprime ao criador poético uma inspiração marcadamente telúrica, aquela que a poesia de um Torga sempre denunciou, desde o seu início até ao seu canto do cisne. A melancolia da origem do telurismo humano provocada pela saudade (a saudade portuguesa, repetimo-lo, para usarmos a consagrada expressão da estudiosa alemã) cumpre-se no apelo da terra, cujo eco possui uma repercussão contínua no imaginário de um escritor. Assim sendo, a saudosa melancolia do passado permite a existência de uma continuidade temporal, continuidade que permite a conjugação entre um passado nebuloso e a esperança num futuro no qual se entrevê a consumação dessa saudade tornada, em simultâneo, parusia e revelação. Dir-se-ia que a consumação da saudade através da palavra poética constitui um caminho para a materialização de uma felicidade plena de alegria, de sucesso existencial e de fortuna espiritual. A contemplação do horizonte permite a auscultação emotiva dessa saudade, um diálogo pleno com o Absoluto.

Compreende-se desta maneira o aparecimento de um livro no qual se celebra, através da palavra emocionada do seu autor, a intemporalidade de um recanto viçoso da Beira Litoral que dá pelo nome de Penacova. É esta Penacova Intemporal que aqui é celebrada por uma personalidade que nela viu a luz do dia, a luz anunciadora de um futuro auspicioso, alguém que tomou consciência do seu próprio ser sob a sombra tutelar do seu cruzeiro antigo, à semelhança de outros companheiros da sua geração e de muitas outras, aqueles a quem chama, justamente, os «Meninos do Cruzeiro». A terra que é evocada neste livro comunga com o mesmo saudosismo que já havia sido manifestado em torno do mesmo espaço geográfico num volume de versos publicado em 1912 por Alfredo da Cunha[9], no qual são visíveis dois sonetos de tipo italiano relevantes: «Penacova, no Mirante Emygdio da Silva» e «Castelo antigo».

Esta relação de proximidade da poesia com a terra possui uma longa tradição no itinerário histórico da poesia portuguesa, partilhado com outros géneros literários. A poesia celebra a força da terra sem esquecer as águas que a banham, o ímpeto natural dos rios e dos seus afluentes, tal como acontece neste livro, em cujos versos o Mondego é celebrado como se fosse uma personagem histórica de vincada personalidade, à qual o autor apelida carinhosamente de «Basófias». É nesse rio, também ele intemporal como as terras que banha, que navega a «barca serrana», habilmente manobrada pelos barqueiros «da Carvoeira», cujos nomes o autor guarda carinhosamente na memória. A imagem destes homens, na perspectiva do autor, não deixa de ser um curioso elemento poético dada a envolvência romântica com que o sujeito poético os reveste, salientando, em simultâneo, os seus aspectos humanos e a sua compleição quase mítica. Esta última, inspirada no próprio carácter simbólico que todos os rios possuem, sobretudo desde que Caronte realizou a sua primeira viagem através da pena de Dante, permite ao leitor mais imaginativo vê-los como entidades que habitam as águas, à semelhança das sereias, das nereides ou das tágides criadas por Camões, ou ainda das criaturas que habitam os pântanos submersos e que o cinema fantástico trouxe para o imaginário ocidental. A barca transporta a roupa lavada pelas lavadeiras, nomeadamente do “Mondego” ou do «Vale da Fonte» e de outros lugares similares, mas também transporta o carvão, bem essencial que representa a principal fonte de energia de um passado não muito distante. Estes elementos, aparentemente antagónicos (a brancura da roupa em contraste com a negrura do carvão), constituem um claro indício de que a vida é feita de elementos contraditórios. E, a propósito da relação da poesia com as águas dos rios, recordamos Diogo Bernardes (c. 1530-c. 1594), exemplo de um autor português do século XVI que, embora não seja originário das Beiras, também celebrou a sua profícua relação com o rio, no seu caso o rio Lima, da qual resultou mais do que um livro[10] onde predominam a écloga e a carta, dois géneros que fazem parte da Medida Nova italiana, ou não tivesse sido o poeta um verdadeiro homem do Renascimento. Por sua vez, na poesia de Luís Pais Amante, o rio que banha Penacova, o inestimável Mondego, apresenta também os seus aspectos pitorescos. Salientamos a referência à apreciada «Lampreia de Penacova» e a inarredável relação desta com o rio (até mesmo quando esta espécie marinha é proveniente de outras águas mais distantes). Outra referência curiosa relacionada com o rio aqui referida é a «Livraria do Mondego», um aglomerado rochoso cuja ancestral estratificação constitui um imponente monumento geológico. O autor chama-lhe «sacristia das paisagens naturais», não deixando de referir os «monstros das rodovias» que lhe escondem as belezas, uma clara denúncia ao carácter ruinoso do progresso civilizacional. Apesar disso, o «Reconquinho do Mondego», lugar de que o poeta se apropriou em termos sentimentais, jamais poderá permitir que o rio perca o seu antigo encantamento.

Deixemos as águas do rio para regressarmos aos campos da Beira e aos poetas que a celebraram, aproveitando o conteúdo de duas obras de referência nas quais se enumeram as obras e os autores que quase divinizaram esses campos. Referimo-nos, em primeiro lugar, ao Cancioneiro de Coimbra de Afonso Lopes Vieira[11], e, em segundo lugar, ao livro acerca da Beira Litoral, uma antologia organizada por José Osório de Oliveira[12], na qual compila um vasto conjunto de nomes de autores portugueses, o qual compreende um percurso de cerca de quinhentos anos de literatura portuguesa, entre Jorge de Montemor, Celestino Gomes (Ílhavo, 1899-1960), Carlos de Oliveira (1921-1981) ou Mário Braga (Coimbra, 1921-2016). Na verdade, já no início do século XVI, no Cancioneiro Geral compilado por Garcia de Resende em 1516, aparece pela primeira vez na literatura o epíteto de beirão para designar os naturais deste território, expressão já utilizada como contraponto de «citadino» ou de «palaciano».

Prosseguindo o nosso périplo pelos poetas que louvaram as qualidades do território beirão, podemos também referir aqui o nome de Gil Vicente, um escritor que, embora também não seja originário das Beiras, escolheu esse território devido aos motivos poéticos que a sua paisagem física e humana evoca, sobretudo no que se refere aos seus aspectos rústicos e primitivos (os quais, em muitas circunstâncias, ainda possui). Destacamos, assim, a sua Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela (1527), peça escrita em verso (como todos os autos produzidos na época) e representada na Corte do rei D. Afonso III. Em Gil Vicente, o território serrano possui o mesmo grau de importância que assume a terra de Sayago nos autos dos autores castelhanos Juan Del Encina (1468-1529) e Lucas Fernández (1474-1542), os quais compartilham com Gil Vicente as origens do teatro ibérico.

A Beira Litoral deve muito da sua história cultural à cidade universitária de Coimbra, a qual imprime às Beiras, no século XVI, o seu carácter mitificador, carácter que se deveu a um conjunto de circunstâncias históricas e culturais que ficaram como memória incontornável de uma mitogenia nacional. Foi na paisagem coimbrã que se realizaram, por exemplo, os Milagres atribuídos à Rainha Santa Isabel, assim como foi aí que se consumou o amor de D. Pedro por Inês de Castro, símbolo de uma paixão eterna convertida em mito literário, o qual ultrapassou todas as fronteiras da Europa[13]. É justamente ainda no período medieval, mais concretamente no reinado de D. Duarte I (Viseu, 1391-1438), que surgiram duas obras primas escritas pelo punho deste rei erudito, as quais marcaram a literatura deste período: o Leal Conselheiro (1438) e o Livro de Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela (cujo texto original só foi publicado em 1843).

A sugestiva beleza dos campos do Mondego constitui um elemento fundador da inspiração, não apenas de inúmeros poetas, mas também de muitos prosadores da língua portuguesa. E é justamente nesse profícuo século, o grande século da Renascença europeia, no qual se afirma o início da era moderna, e, por conseguinte, o início do próprio homem moderno, o homem europeu na sua plenitude, contrastante com o homem medieval, que se afirmam os grandes nomes da nossa literatura. Impõe-se o nome de Camões, personalidade ligada a Coimbra por ter frequentado um dos Colégios da Rua da Sofia (não se sabe se frequentou a Universidade), e cuja importância literária cobre o século inteiro, embora sob a «vil tristeza» de um obscuro atraso cultural que sempre caracterizou o país. É nalguma da sua poesia lírica que nos surgem os campos do Mondego, sempre como pano de fundo de uma paixão personificada numa mulher idealizada, embora pouco convencional na pena de Camões. Temos que considerar a importância de um Jorge de Montemor (ou Jorge de Montemayor por ter escrito as suas obras em castelhano, n. Montemor-o-Velho, 1530-m. Turim, Itália, 1561), autor que enaltece as qualidades da terra que lhe dá o nome e que é considerado o criador do romance pastoril na Península Ibérica através do célebre Los Siete Libros de la Diana (c. 1559), obra na qual combina o verso com a prosa. Ainda no século da Renascença falta-nos referir um nome maior da historiografia e da prosa portuguesa: o historiador João de Barros (Viseu, 1496-1570), autor da Crónica do Imperador Clarimundo (1522) e também desse monumento historiográfico intitulado Décadas da Ásia (1552). A importância da obra de João de Barros faz dele a segunda grande figura da literatura da Renascença portuguesa logo a seguir a Luís Vaz de Camões.

Já na transição do século XIX para o XX, podemos referir outros poetas, quer oriundos das Beiras quer de outras regiões do país, que também dignificaram as terras da Beira com os seus escritos. Entre eles, salienta-se um Tomás Ribeiro (Parada de Gonta, Tondela,1831-1901) ou um Augusto Gil (1873-1929), que viveu toda a sua vida na cidade da Guarda. No domínio da prosa, temos que referir as novelas de Camilo Castelo Branco, nas quais é retratada uma certa nobreza provincial beirã, bem como os seus tipos populares. Estes são descritos através de uma rudeza que contrasta com a viva expressividade dos tipos minhotos. Estas características algo bisonhas do homem beirão reaparecem nos contos de Abel Botelho (Tabuaço, 1854-1917), sobretudo no que se refere aos tipos femininos. Referimo-nos ao romance intitulado Mulheres da Beira (1898), cujo conteúdo já se aproxima do Naturalismo literário. Outra personalidade da nossa literatura que soube caracterizar com maior expressividade as gentes da Beira Alta é o romancista Aquilino Ribeiro (Sernancelhe, 1885-1963), em cuja obra a Beira surge como cenário envolvente fundamental, espaço onde se move esse personagem inesquecível conhecido como «Malhadinhas», entre muitos outros personagens literários, os quais permitem ao leitor um conhecimento muito aproximado da alma beirã. E, a propósito da já aqui referida continuidade entre a terra e o rio, sobretudo no que se refere ao labor campestre e marítimo, temos que mencionar dois nomes: Luís de Magalhães (1859-1935), que exaltou o trabalho dos barqueiros da ria de Aveiro, e Raul Brandão (1867-1930), em cujos capítulos do seu romance Os Pescadores (1923), descreve os dramas e os triunfos da faina fluvial através da descrição de uma paisagem propícia ao impressionismo. Entre os autores que atravessaram a primeira metade do século XX e que retrataram o espírito das Beiras, contam-se Afonso Duarte (Ereira, 1884-1958), o cantor dos campos de Coimbra; Branquinho da Fonseca (Mortágua, 1905-1974), através dos seus contos; Fausto José (Armamar, 1903-1975) através da sua poesia; ou ainda Virgílio Godinho (Ferreira do Zêzere, 1901-1987), que se refere às Beiras como O Calcanhar do Mundo (1942). Do início de oitocentos até ao presente, poetas românticos, naturalistas, parnasianos, simbolistas, exaltaram a beleza quase sobrenatural, a feição simultaneamente mítica e mística, mas nem por isso menos erótica e sensual, dos campos de Coimbra através da manifestação de uma forte nostalgia da mocidade perdida. É disso exemplo o livro de memórias que Trindade Coelho (1861-1908) sugestivamente intitulou In Illo Tempore (1902).

É na esteira deste forte movimento poético de feição saudosista em torno de um tempo e de um lugar, que o livro Penacova Intemporal de Luís Pais Amante pode ser inserido. Nesse espectro saudosista, igualmente revelador de uma marcada intemporalidade, o sentimento humano acusa a sua cumplicidade com o meio envolvente, circunstância que é visível em vários poemas deste livro, sobretudo quando o poeta se refere a um tempo de felicidade plena, no poema que intitula «Aqui fui feliz, sim», poema de agradecimento aos pais e ao povo de Penacova, no qual recorda o «carinho do povo amigo» numa festa dedicada aos seus poemas. Observa-se neste poema uma cena idílica na qual o poeta descreve o povo de Penacova a cantar em uníssono, ao mesmo tempo que recorda a sua própria infância, uma época rica de afectos e de amor onde o tempo passava devagar.

Regressamos, assim, à fulcral questão do tempo e da memória, elementos inseparáveis na ambiência poética. Referimo-nos, assim, a dois tipos de memória: a memória dos lugares e a memória das emoções que esses lugares representam. A imagem de um lugar não se basta a si mesma: é acompanhada pela sua dimensão simbólica, somente decifrada pela chave do espírito, não apenas expresso na sua envolvência, mas sobretudo no imaginário de quem viveu, conviveu e assimilou esse lugar.  Esses espaços de referência memorialística, não surgem devido a um acaso fortuito: resultam de uma escolha, de uma assimilação e de uma íntima apropriação por parte do sujeito poético.  Para além dos já aqui referidos Cruzeiro de Penacova, ou o Mirante Emídio da Silva, marcos emblemáticos de Penacova, essa aproximação memorialística também se manifesta em espaços como o «Penedo do Castro» ou o «Bico da Lapa». Este último, é um lugar que o autor enuncia como «mágico», o qual sintetiza em três palavras de grande peso e alcance na cultura portuguesa: são elas «barco», «fado» e «saudade».

Outros lugares de Penacova evocam na memória do autor uma perspectiva de profundo humanismo, como, por exemplo, o «Chafariz do Porco», monumento de feição profana onde se encontra esculpida uma gárgula com cabeça de porco, espaço de encontros calorosos e de amenas cantigas tradicionais. Outro desses lugares onde se afirma a intemporalidade da memória é o «Terreiro de Penacova», lugar de muitas e saudosas evocações e de outras múltiplas reminiscências. Para além das memórias em torno do empreendedorismo das gentes de Miro, ou do recorte pitoresco da «Aldeia do Caneiro», é na «Aldeia do Caneiro», com o seu antigo porto fluvial, que o poeta vislumbra na sua mente um «presépio natural» pela sua singeleza e simplicidade. É ainda na «Quelha», uma ruela «de esguelha» onde o poeta recorda um admirável quadro, pleno de humanidade, o qual se reporta à imagem das mulheres a comer na rua «em comunhão». E é no Ingoeiro (expressão típica da zona), junto ao «Reconquinho do Mondego», espaço a que o poeta chama enternecidamente o «Meu Ingoeiro», no qual evoca as recordações da pesca na companhia do seu irmão e a dos pic-nics de família.

Esta saudosa aproximação à memória dos lugares da sua infância e da sua aprendizagem da vida, permite ao poeta o uso de uma figura da retórica clássica denominada de «personificação». Esta é utilizada para conferir qualidades humanas aos espaços que a poesia sacraliza: no poema que dá título ao livro, «Penacova Intemporal», toda a vila (bem como o seu território envolvente) é compreendida como uma entidade viva, um ser pletórico de vida que mantém muitas das suas tradições e dos seus hábitos ancestrais. Como já tivemos oportunidade de observar, também o rio Mondego surge aqui personificado com qualidades humanas, com direito a alcunha pelas suas qualidades naturais e também pelas suas características peculiares. E depois, há ainda a «Rua Principal», aquela que o autor recorda com um carácter feminino, engalanada para as festas, dando brilho ao desfile das confrarias, e em cujas portas e janelas avulta a benevolência de um rosto humano e feliz.

Seria inevitável que o sujeito poético não tivesse ficado indiferente à memória referente aos aspectos marcadamente humanos e às práticas culturais que deles fazem parte. Não deixa de ser comovedor o poema de homenagem que presta ao seu professor, o Professor Homero Pimentel, nome absolutamente invulgar no contexto nacional, o qual, por si só, é evocador de um poeta (Homero) que determinou o rumo, na Antiguidade Clássica, de toda a poesia ocidental. No que respeita às práticas culturais e aos costumes, é com terno enlevo que evoca, no poema intitulado «Casados e solteiros», uma prática tradicional da vila: um jogo de futebol entre dois «clubes» peculiares: o dos «solteiros» e o dos «casados», dia memorável de matança do porco no Terreiro de Penacova. O poeta deixa transparecer a ideia curiosa de que o jogo da bola funcionava como estratégia contra a censura imposta pelo Regime devido ao espírito livre proporcionado pela camaradagem desportiva, claro sinal da inteligência de um povo que possui a astúcia suficiente para contornar os obstáculos incómodos ao seu modus Vivendi de modo a preservar a sua felicidade. Para além do jogo da bola, o poeta refere também «Os bailes de antigamente», prática popular que compara a um «instituto de recreio». E, por fim, no poema que intitula «Vale da Fonte», faz alusão a outra prática popular e tradicional, algo que já é uma memória indistinta e quase apagada de outro tempo: refere-se às lavadeiras, profissionais ou não que, devido ao seu esforço e empenho sobre as «pedras de lavar», imprimem à roupa lavada uma «brancura divinal». As mudanças que o mundo sofre (mudança que Camões celebrou na sua epopeia) são testemunhadas pelo olhar do poeta no presente, um tempo em que já não há lavadeiras no Vale da Fonte, um espaço abandonado às variações do tempo e ao humor dos homens, a transformação negativa de um lugar.

Em consequência desta transformação, por vezes de forma radical, há outro aspecto que o poeta não esquece: aquele que se refere à tragédia dos incêndios. Para usarmos uma imagem inspirada na Commedia de Dante que se relaciona com esta dramática realidade, podemos dizer que se trata da simbólica conversão do Paraíso no Inferno, imagem algo maniqueísta gerada pelo catolicismo tradicional. Não deixa, porém, de existir uma estreita correspondência entre esta imagem e a realidade percepcionada pelo homem. A este propósito, é no poema intitulado «…e a nossa beleza ardeu» que menciona as «bolas de fogo», os «ventos de maré», o flagelo que corre «voraz atrás do tempo da paz», um «massacre sobrenatural».

Numa declarada demonstração de fé e de saudoso humanismo, o poeta menciona a «Senhora da Guia», uma «Capela do Fundo da Vila» onde «as mulheres levavam carinhos» e «muito abraço». À semelhança do que ocorre no Vale da Fonte, o poeta refere-nos a dessacralização deste espaço outrora sagrado, agora vandalizado e tristemente usado pela maldade e pela obscura inconsciência dos homens. É no poema que intitula «Advento do Natal» que definitivamente demonstra a sua fé ao mencionar os ensinamentos dos profetas Isaías e Tobias. É no advento do Natal que a broa é repartida como sinal de fraternidade: uma prática que faz apelo à necessidade da oração, mas também da acção prática que faz parte da mais pura humanidade para com o próximo.

Para darmos por finalizado o périplo por este livro de poemas, regressamos ao início da nossa reflexão, nomeadamente ao poema que intitula «O vale inspirador e o olhar», um dos poemas reveladores do encontro (ou reencontro) que o poeta tem consigo próprio. A contemplação do vale é, por si só, um sinal desse reencontro fundamental através da comunicação com o Absoluto. Mas há também o poema que intitula «Emoções», no qual faz jus ao sagrado enlevo dos amigos e nos confessa o gesto igualmente sagrado, de feição bíblica, de se converter num «pescador», o que será algo muito próximo de ser a reminiscência personificada de um discípulo de Cristo. E é através do acto de pescar que o poeta se encontra face a face consigo próprio: com o homem que é o «poeta de Penacova»: uma vez mais, está implícita a confessional declaração de amor à terra que o viu nascer. Essa aproximação de si a si mesmo, afirma-se no poema que intitula «Hoje, o sol é meu», evocando os dias de «inverno marginal» de um tempo passado; ou ainda no poema «Pensei», uma memória da Serra do Monte Alto, espaço de dolorosa recordação das guerras napoleónicas. Nessa auto-reflexão em torno do encontro do poeta consigo mesmo, destaca-se o poema que intitula «Voo libertário», poema no qual assume a sua condição de homem livre ao estabelecer uma ponte metafísica entre essa condição libertária e o voo incomparável e único da águia real: a imagem desta parece confundir-se, por osmose, com o espírito do próprio sujeito poético.

Não obstante a sua condição de animal alado, a águia real é um ser da terra, e é-o à semelhança dos homens, também eles seres da terra que possuem a sonhadora nostalgia de voar, embora sem perderem de vista a terra, o chão sagrado da sua felicidade. É devido a este magnetismo natural, a esta incondicional paixão, que o autor deste livro (re)ergueu a sua Casa Azul, aquela que possui uma não menos nostálgica gárgula de feição medieval, virada para a Rua da Costa do Sol, lugar onde brincou, namorou e dançou no fecundo período da sua adolescência. Luís Pais Amante é o poeta da Casa Azul, aquela que poderá vir a ser, um dia, não apenas um centro cultural, mas também a Casa-Museu que irá albergar o espólio do poeta, o manifesto do seu percurso criador e existencial.

Os poemas que enformam este livro irrompem com um ímpeto de espontaneidade que anuncia a sua autenticidade, um jorro verbal que é movido, como atrás pudemos demonstrar, por um feixe de emoções, talvez o seu maior elemento motivador. Inscreve-se, assim, esta poesia, no signo da emoção. A estreita relação das palavras com as emoções, ambas enquadradas no apego à terra das origens, permite-nos compreender que há, nesta poesia, uma exaltação nacionalista, embora de teor não político, uma exaltação patriótica veiculada pela força anímica do coração, a qual sensibiliza qualquer leitor. Ocorre aqui o equilíbrio entre o indefinido sentimento da nostalgia, símbolo da saudade portuguesa, e a inelutável esperança, sentimento efusivo que auspicia um futuro de paz e de tranquilidade, qualidades que só o tempo, e apenas o tempo, pode atribuir a todos os homens de boa vontade que têm sede de futuro.

Todos os poetas sobrevivem e evoluem neste imponderável equilíbrio, tão precário e ao mesmo tempo tão perene quanto a compleição do Universo, entidade misteriosa cujo vertiginoso movimento nos permite acreditar na sua ilusória quietude. É nesta profícua relação com o Universo que se caracteriza deste modo, e de acordo com o que a Ciência nos diz, a verdadeira configuração do Tempo, categoria filosófica que esta poesia encerra desde o seu primeiro verso até ao seu último. A palavra poética é sempre a derradeira palavra, aquela que enuncia, para lá de toda a ciência, por um lado, para lá de toda a metafísica, por outro, a grata plenitude que subjaz à exultante tentação de existir.

José Fernando Tavares

José Fernando Tavares (n. 1965) é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses, pela Universidade Autónoma de Lisboa, e mestre em Literatura Comparada pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Leccionou, entre 1993 e 1996, as cadeiras de Literatura Comparada, Teoria da Literatura e Literatura Medieval Portuguesa na Universidade Autónoma de Lisboa. Ministrou um curso de Escrita Criativa na Aula do Risco, entre 1997 e 2000. É professor efectivo do ensino secundário desde 1993. É o redactor principal da revista literária Sol XXI, desde 1992. Dirige o jornal Artes & Artes desde 1998. Lecciona, actualmente, as cadeiras de Língua e Cultura Portuguesa, Evolução da Comunicação Linguística IV e Literatura Infanto-Juvenil e Expressão Poética na Escola Superior de Educação do Instituto Jean Piaget, de Almada. Prepara doutoramento na área da Literatura Portuguesa Clássica (séc. XVI). Da sua actividade como crítico resultaram cerca de trezentos artigos, quarenta prefácios a obras diversas, bem como um número considerável de intervenções públicas em conferências e colóquios desde o norte ao sul do país. A sua bibliografia compreende os seguintes títulos: Para Uma Poética da Leitura (1991); A Letra do Espírito – Estudos sobre a Experiência do Imaginário (1996); Fernando Pessoa e as Estratégias da Razão Política (1998); Damião de Góis: Um Paradigma Erasmiano no Humanismo Português (1999); A Paisagem Interior I – Crítica e Estética Literárias (2000); Fernando Pessoa: da Razão Histórica à Utopia Teleológica (2002).


[1] Cf. Penacova Intemporal, Penacova, Ed. da Câmara Municipal de Penacova, 2021. O autor, Luís Pais Amante, nasce na Vila de Penacova em 1954. Licenciado em Direito em Lisboa. Pós-graduado, advogado e gestor. Diplomado pelo Management Center Europe (Bruges). É autor dos seguintes livros de poesia: Poemas a Recordar, Ed. do Autor, 2012; Conexões, Lisboa, Ed. Colibri, 2016; Reflexo(s)… da Vida na Vida das Poesias, Lisboa, Ed. Colibri, 2017; Poesia (das Circunstâncias) do Tempo, Lisboa, Ed. Colibri, 2018; Conversos, Ed. da Associação Cultural de Santa Cruz da Trapa, 2018.
[2] In prefácio a Almeida Faria: Rumor Branco, Lisboa, Portugália Editora, 1962.
[3] Cf. Miguel Torga: A Criação do Mundo – Os Dois Primeiros Dias, 1937; O Terceiro Dia da Criação do Mundo, 1938; O Quarto Dia da Criação do Mundo, 1939; O Quinto Dia da Criação do Mundo, 1974; O Sexto Dia da Criação do Mundo, 1981. Há ainda, como complemento desta obra monumental, o próprio diário do autor, o qual compreende 16 volumes, publicados entre 1963 e 1993.
[4] Cf. Martin Heidegger: Ser e Tempo, 1927.
[5] Cf. Eduardo Lourenço: Tempo e Poesia, Lisboa, Relógio D’Água, 2ª edição, 1987, pág. 38. Cf. também Manuel Antunes S. J.: Do Espírito e do Tempo, Lisboa, Ática, 1960, pp. 7-10.
[6] Palavras proferidas por Camões no argumento do filme Camões de Leitão de Barros, realizado em 1946.
[7] Cf. Platão: Apologia de Sócrates, tradução prefácio e notas de Pinharanda Gomes, Lisboa, Guimarães Editores, 1988.
[8] Cf. Carolina Michaëlis de Vasconcelos: A Saudade Portuguesa, Lisboa, Guimarães Editores, 1996 [1922].
[9] Cf. Alfredo da Cunha: Versos II, Lisboa, Tipografia Universal de Coelho da Cunha, Brito e Companhia, 1912. O volume compreende: «Endeixas», «Madrigais» (o conteúdo de Versos I, Lisboa, 1910), «Rimas várias», um poemeto inspirado no Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett intitulado «Magdalena de Vilhena» e «Quem canta – Quadras populares». Os poemas referidos no texto encontram-se, respectivamente, a págs. 117 e 118.
[10] Veja-se O Lima (1561) e Rimas Várias Flores do Lima (1530-1595).
[11] Cancioneiro de Coimbra em que se contém poesias portuguesas e nos saudosos campos inspiradas… escolhidas por Afonso Lopes Vieira, Coimbra, França Amado Editor, 1918. Existe uma edição recente desta obra, também pela mesma editora, publicada em 2002.
[12] Cf. José Osório de Oliveira (Compilação, anotações e prefácio): Beira Litoral: Antologia da Terra Portuguesa, Lisboa, Livraria Bertrand, 1964. Referimos também os outros volumes desta série consagrados ao território beirão, organizados, respectivamente, por Vasco Miranda (Introdução, selecção e notas): Beira Alta: Antologia da Terra Portuguesa, Lisboa, Livraria Bertrand, 1961; Jaime Lopes Dias (Compilação, anotações e prefácio): Beira Baixa: Antologia da Terra Portuguesa, Lisboa, Livraria Bertrand, 1960.
[13] Cf. Maria Leonor Machado de Sousa: Inês de Castro: um Tema Português na Europa, Coimbra, Almedina, 2020 [1987].

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