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Nota (prévia) do autor: Esta crónica foi escrita há cerca de dez anos. Está publicada no livro “Memória de Pedra” e mais não é do que uma viagem no tempo, rumo à construção da Barragem da Aguieira e ao “desaparecimento” da Foz do Dão, testemunhadas pelo autor – quando criança – e escrita trinta anos depois.

BARRAGEM

Não era tanto o conceito em si que impressionava, mas o que havia à volta dela. Um bairro construído porque a barragem crescia no vale do rio e as casas dos operários com as famílias dentro delas, foram postas ali para o efeito e as pessoas eram de todo o lado vivendo, portanto, lado a lado com a construção do grande muro de cimento que haveria de travar e regular as águas dos rios de humores incertos.

Considerava-a um lugar distante porque cheio de gente de muitos lados e era como se ir lá fosse uma viagem a um outro país, porque as pessoas estranhas enfiadas em casas de madeira pré-fabricadas para as quais as pessoas das aldeias vizinhas olhavam de soslaio porque não de cimento e tijolos e por isso as perguntas sobre a sua solidez, como seriam por dentro, os estores brancos e os tapetes na entrada, as casas alinhadas, coladas umas às outras, todas iguais, as mulheres à janela espreitando os filhos deslocados na rua, outras estendendo a roupa nas cordas e pelo canto dos olhos as panelas ao lume por via dos caldos não saltarem delas e a seguir o fogão sujo.

Ao lado das casas, crescendo pelas encostas do vale, a grande parede em construção, cinzenta e cheia de ferros e tábuas, máquinas que se aprontam junto a ela e a fazem crescer, juntamente com os homens que como formigas as manobram ou lhe esfregam as costas, sendo que o esfregar as faz crescer, como aliás tudo as faz crescer, crescer para parar as águas rebeldes do rio.

A dada altura, alguém me explicou que uma aldeia que visitava frequentemente iria desaparecer na ditadura das águas que entretanto iriam começar a trepar as encostas do vale, uma aldeia onde as casas se arrumavam sem ordem, casas que iriam desaparecer no escuro das águas e com elas a velha ponte de Salazar que unia as margens e sim, Salazar já quieto na tumba, sem expressão, bastante morto e as raízes da oliveira a entranharem-se-lhe por entre o que restaria do seu corpo branco.

A Foz do Dão era essa aldeia e que se resumia à ponte e às lampreias, uns bichos compridos, bastante feios, algures entre as cobras e as enguias e que via estrebuchar nas bacias lá de casa, aguardando o arroz da companhia, adivinhando a morte e depois às postas em travessas, cobertas de sangue e vinho cozidos.

Por lá passava a estrada para a vila de Santa Comba Dão, ambas benzidas pelo rio que se lhes entranha no nome e pela sombra de Salazar, uma figura presente, feita raiz funda nos espaços e na respiração das pessoas. Algumas ainda falavam dele enquanto faziam vénias de respeito e deferência, enquanto o pressentiam por trás dos seus ombros
– Ouço o que dizem de mim!
e o cuidado na escolha das palavras, no tom e sempre o velho Presidente de nariz adunco, beirão, vigiando as sombras por baixo da espessura das sobrancelhas, escutando as vozes, esfíngico na sua expressão de uma secura beirã.

Quando as águas subiram, comecei a ter medo porque as casas da aldeia vazias de vida e gente, a ponte já submersa a ligar escuridões quietas nas margens que passaram a ser fundo, sendo engolidas num vagar de tortura pelos limos e nem mais uma motorizada, um trator ou um carro de bois, uma viúva com um feixe de lenha à cabeça e avental cinzento por cima das roupas escuras, rebanhos de ovelhas e cabras tilintando chocalhos, os cães soltos cambaleando as línguas e ladrando à aragem e às bicicletas e o focinho encostado às pedaleiras, ladrando nervos, atirando-se aos pneus dos poucos carros, no tropel das quatro patas e com as orelhas recolhidas em formas aerodinâmicas.

Depois, a barragem pronta.

Enorme e tanta água primeiro a crescer e depois parada atrás dela e o bairro ao lado, uma terra que se plantou ali, cresceu e decidiu ficar, servindo de aviso às povoações vizinhas cujos filhos deveriam evitar porque mal frequentada, os estigmas da gente de fora, sem amarras, sem referências, sem amor à terra, de passagem, de modos que a barragem mudou o mundo ali à volta que não apenas as águas do rio e depois dela os nevoeiros, aldeias fantasma e tantos retratos desfeitos, paredes sem molduras e pessoas solenes fotografadas, olhando-nos à mesa, sem salivar a ementa, entes já entregues que por vazes parecem gritar de dentro das molduras, a suspeição de um movimento, um piscar de olhos e no entanto nada.

Todos mudos e quietos, já não naquelas paredes bloqueadas pela água fria e as memórias subindo em pequenas bolhas até à tona e se não rebentadas pelos peixes, espalham-se ao sopro dos ventos desfazendo-se, nas cozinhas alguidares vazios de lampreias porque estas presas pela grande parede que não entendem, o tempero nos frascos, o arroz nos pacotes e as cozinheiras dedilhando as cinturas com o nervoso das mãos.

António Luís

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