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Nota do autor: Mais uma crónica que integra o livro “Memória de Pedra”. Trata-se do “retrato” de um senhor padre que conheci enquanto criança em algumas missas, em S. Pedro de Alva, algures a meio da década de 70 e escrito mais de três décadas depois.

UM PADRE QUE FALAVA COM DEUS

Um padre cujos aros grossos dos óculos vi por aí por muitas caras e no entanto já morto e portanto apenas na memória, já ausente do altar, atrás de uma mesa de mármore claro, coberto por uma toalha branca, o senhor padre cheio de palavras, umas a saírem-lhe pela boca, outras pelos olhos, pelos bolsos cheios, por baixo dos paramentos, palavras amontoadas que se tentam organizar umas às outras de modo a fazerem-se entender, subindo devagar até à boca onde depois eram projetadas com estrondo no ar, com os fiéis nas cadeiras, encolhidos, mudos, a suster a tosse que todos os sermões têm dentro de si, porque as correntes de ar também, o dedo indicador a empurrar os óculos que desciam pela cana do nariz à conta da vibração mas só os óculos por aí, não as palavras por baixo dos pensamentos porque as pessoas usam poucas palavras, as palavras pesam muito mulheres de xailes pretos, viúvas, ensaiando lágrimas e se Cristo morto, logo a seguir vivo por via da gravidade das sentenças do senhor padre, as mulheres soltando lenços brancos que levam aos narizes e depois fungadelas pelo ar e outras palavras ainda a engravidar no senhor padre, no púlpito, bradando aos céus e aos incréus e sempre o dedo apontado, os santos no altar de olhos parados, inexpressivos, sem um ar, um gesto, uma tosse, uma fungadela, nada porque não entendem um tempo que se faz de pedra e que se lhes escapou, eu encolhido entre a perna do meu pai e a perna de uma senhora viúva embrulhando papelinhos de silêncio, enfiando-os na mala de peles baratas, a cabeça à banda acenando leves sins quando o poder das palavras do senhor padre ou da força com que atingiam os cristãos prostrados nos bancos que por fim desembrulhavam os seus papelinhos de silêncio.

As palavras do senhor padre eram como aves que não conhecia. Voavam soltas pela igreja e só algumas eu percebia, sendo que o som que as empurrava era como se Deus usasse a boca do senhor padre cujos óculos já vi por aí em muitas caras para se fazer ouvir e nem sempre entender, porque as cabeças dos cristãos eram simples, seguravam chapéus se homens ou lenços se mulheres e tratavam das suas vidas, sentando-se nos bancos rijos da igreja aos domingos como caçadores de borboletas empunhando pequenos cestos de rede na ponta de pau, despejando-as nos cestos maiores e dando-lhes uma ordem precisa de modo a parecerem úteis, fazendo crer que Deus não domina a língua ou tem problemas de comunicação, o que para Deus é bastante grave.

Para mim, Deus estava atrás do altar, cavalgando numa cadeira branca, colocada por sua vez numa nuvem igualmente branca se Deus calmo ou negra se Deus irritado, Deus que sussurrava no ouvido do senhor padre a ordem das palavras que lhe saiam da boca, dos bolsos e as que por baixo dos paramentos iam subindo. Imaginava-os a combinar o tom, o teor e a duração do sermão agora é homilia os dois antes da missa, atrás do altar, o senhor padre na ponta de um escadote, ambos com um manto pelos ombros que todos os altares são frios, estão lá no alto e as correntes de ar abundam e é sabido que no céu não há aquecedores nem lenha para lareiras.

Um dia o senhor padre falou comigo e procurei os seus olhos por trás dos óculos que já vi por aí em muitas caras de modo a perceber se zangado e Deus numa nuvem negra se não zangado e Deus numa nuvem branca perguntando-me pelos pecados, pelas encomendas de Ave-Marias

 – Já sabes o Pai Nosso?

E o meu pai ao lado, talvez pendurado na minha pequena mão e já poucas palavras por baixo dos paramentos do cura e dos bolsos já só apenas moedas num e um lenço branco no outro, de assoar sinusites e quer dizer que antecipando a minha resposta, não na minha boca, mas nos meus ombros a encolherem porque desconhecia o significado de pecados e na cara dele os aros dos óculos que já vi por aí em muitas caras pretos, lentes quase grossas e os olhos do senhor padre por trás, pequenos, diminuídos, lançando-me pontos de interrogação e eu com medo dos ralhetes, do sermão no púlpito, da penitência encomendada e combinada com Deus atrás do altar, sem perceber eu por que razão Deus não aparecia à minha frente e se fazia representar perante as almas, pelo senhor padre.

António Luís

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