Publicidade

Nota do autor: Mais uma memória do autor, ainda do tempo em que os mortos eram levados numa Carreta puxada a força de homens e mulheres, estrada fora, no caso para o Cemitério de Figueira de Lorvão, situação obviamente anterior ao advento das Agências Funerárias que, entretanto, tomaram conta da “conta” da morte.

A CARRETA DA MORTE

     Duas filas de gente, uma de cada lado da estrada e uma carreta de rodas de madeira, acabadas de ferro, puxada e empurrada por homens valentes, que em homenagem ao morto, circulando no meio da estrada de alcatrão carcomido pelo tempo – vestido de sol e chuva, calor e frio – e massajado por toda a sorte de veículos, deitado à outra sorte da míngua de dinheiros que salvassem a honra do piso, o caixão apoiado em esponjas por via de amortecer o desconforto do viajante que melhor seria se se queixasse do desconforto da viagem mas não, porque bastante morto e atrás da carreta, caras fechadas, enfiadas no alcatrão, cogitando na sua condição, a elencar pecados que possam antecipar o destino para lá do limbo branco, pessoas vergadas ao silêncio do respeito, uma ou outra tosse há sempre tosse a cortar o respeito os passos suaves sobre o piso de defeitos, um
– Aiii, Deus!!
Da viúva que entre os lamentos deitava contas à vida, à provável solidão, enquanto recebia confortos dos acompanhantes, outras mulheres que não viúvas, mas de lágrima solidária e ia antecipando as pilhas de monotonia arrumadas a um canto do armário da sala agora enorme,
– Era um bom homem
de outros homens que seguravam ao peito os seus respeitosos chapéus escuros e por cima de tudo e todos, um bando de corvos cruzando o vale, crocitando os ventos, enquanto o cortejo da morte subia a ladeira.
– Trabalhador!
Uns poucos carros atrás impedidos de passar
– Amigo do seu amigo
novos assomos de tosse, gente a assoar-se que a morte propicia o pingo do nariz
– Não devia nada a ninguém
a carreta vagarosa, a falta de óleo numa das rodas e um ligeiro chiar, o senhor Padre em soslaio para o sacristão
– É uma perda.
O sacristão de soslaio para parte nenhuma enquanto segurava solene as chaves da capela do cemitério, o caixão lustroso da funerária trepidando o desacerto das rodas no chão, coroas de flores afogando o espectro da morte ali transportada no vagar das pastagens onde nenhuma vaca para as contas e a morte pouco mais do que um desfile de solas de sapatos seguindo a carreta, o fim da ladeira e o cemitério já não longe
– Vai em paz
o choro da viúva adensando-se ao mesmo tempo que a distância à última morada fica mais curta, a carreta sempre oscilante, os bons homens cansados de puxar o rudimentar veículo da condição humana, o sacristão bichanando ao senhor Padre enquanto atrás da carreta os acompanhantes uns de cara no chão, outros olhando-se resignados com a inevitabilidade daquilo tudo e de um dia não conseguirem assegurar a tranquilidade do vislumbre da carreta, o senhor Padre a limpar o suor da testa, a chave na mão do sacristão, o cortejo, a barriga aos corvos que cruzam o vale no agouro dos seus bicos
– Pronto, chegou!
A viúva em lágrimas, o cortejo com mais tosse, a respirar fundo, de mãos cruzadas sobre o peito, a missa na igreja, o morto tranquilo no seu vale de veludos, o pólen das flores, a probabilidade de um espirro
não do cadáver
– A saúde dele é que já andava fraca
as mulheres de xaile negro aconchegando a morte no peito, dedilhando rezas assobiadas na ponta dos lábios
– Este dia havia de chegar
o caixão de novo na carreta, agora rumo ao cemitério, com o coveiro expedito de pá em riste
– Ninguém lhe escapa. Vimos aqui parar todos.
Uma roda de gente, o caixão em balanços seguro por precárias cordas, a viúva não sustendo um grito, lenços, lágrimas, as bênçãos do senhor Padre, a carreta empinada no carreiro – desprovida de qualquer honra – a terra sobre o caixão, a azáfama do coveiro
– A vida é um minuto. É um instante.
A viúva em prantos, de mãos cruzadas sob os peitos, resignadas sob o fim das coisas como há tantos anos eram
– Qualquer dia vou ter contigo!
E dali a pouco uma barriga de terra, coberta de flores, a carreta na arrecadação, as pessoas agora de costas para a morte, rumando às suas vidas pela estrada de alcatrão velho e gasto, abandonando o jardim dos silêncios, semeado de flores que os mortos regam de noite com as suas lágrimas de nada.

António Luís

Publicidade

Artigo anteriorAssociação ZERO alerta para o prejuízo que causa na floresta portuguesa a indústria de “pellets
Próximo artigo“Bandeira azul” hasteada nas praias fluviais de Penacova – Vimieiro e Reconquinho ostentam também bandeira “Praia acessível para todos” e selo “Qualidade de ouro”

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui