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Nota do autor: Esta crónica, como as que têm sido publicadas nesta série, são memórias escritas sobre locais, situações ou pessoas que o autor carrega desde a infância e escritas praticamente quatro décadas depois. Esta é dedicada a uma figura incontornável da aldeia de Travanca do Mondego. O “Senhor Padre Veiga”.

O SENHOR PADRE QUE ASSOBIAVA AS PALAVRAS

     Poucas coisas eram tão certas como os assobios nas palavras que terminassem na letra “s” e a coisa funcionava como cartão-de-visita do senhor Padre, uma certeza com corpo e se calhar alma, uma vez que se tratava de um padre, não que os “s” caminhassem sozinhos por veredas, porque na verdade estavam sempre guardados na boca do senhor Cura, por isso presos e só viam ares exteriores quando a boca do senhor Padre se abria, fosse para simplesmente se dirigir aos seus paisanos, fosse do limbo do altar na tentativa de encaminhar as almas que demandavam o seu templo em busca de orientação, com os “s” a andar soltos pela igreja, desciam pela nave central, arrumando-se uns e passando outros pelos bancos de madeira e quando chegavam ao fundo, voltavam a subir pelas laterais, tirando o pó aos quadros dos santos pendurados no branco das paredes, arrumando as estátuas mudas de monotonia, sempre com os santos de ar longínquo a contemplar vacas imaginárias, feitas de vazios e mugidos de silêncio
     não entram vacas nas igrejas e muito menos podem mugir
as flores nos vasos e nas jarras arranjadas pelo sibilino “s”, como se este tivesse umas mãos de veludo, as jarras sobre os naperons feitos pelas beatas, mãos das mulheres antigas, enquanto arrumavam em pequenas caixas a vida alheia que lhes saía pelas bocas, em tardes de conversas, linhas e agulha com as vizinhas, enquanto isto já os “s” no altar e de novo na boca do senhor Padre enquanto este empunhava solene o cálice de vinho, mostrando-o aos fiéis.
     Era um Padre que presidia ao quotidiano de muitas pessoas da aldeia e da paróquia através da ação que desenvolvia, muitas vezes para além das missas e dos terços, funerais e casamentos, batizados e comunhões e sempre me espantei como é que ele não trocava tudo e num casamento não se punha a dedilhar orações aos mortos e como é que os terços lhe saíam tão escorreitos à quarta, quinta ou outro dia que não a terça-feira e, mais tarde, quando me apercebi dos meandros da Matemática, muito me espantava igualmente que não falasse em quartos, quintos ou oitavos em vez de só em terços, por exemplo, o senhor Padre com a batina negra, que apenas mostrava os sapatos no fundo do tecido e de resto tudo coberto, o colarinho branco, a cruz ao peito, do lado esquerdo, por cima do coração, o seu andar inclinado como se fosse a fazer vénias ao chão que pisava, as mãos atrás das costas, sempre com o mesmo ar compenetrado, como se estivesse sempre em respeito e temente a Deus
     o seu “chefe”, digamos,
mesmo que pelos seus passos apenas contemplasse as pedras do seu velho caminho de todos os dias, ladeado de oliveiras
     porque Deus em toda a parte e portanto nas pedras do caminho ou pousado majestático na copa das oliveiras, com as folhas a ensaiarem cócegas nos pés celestiais enquanto o senhor Padre procurava catar por entre as ervas, alguns “s” que se lhe tivessem escapado e escondido dos gafanhotos.
     A dada altura o senhor Padre alternava entre a igreja e a capela e, quando se esquecia, lá ficavam uns paramentos na sacristia a impregnarem-se no cheiro de todas as sacristias, um cheiro sempre igual porque, ali, Deus impera e o cheiro de Deus é igual em toda a parte, sobretudo nas sacristias onde ajuda o senhor Padre a vestir-se e despir-se das solenes vestes e por baixo dos paramentos prostrados sobre as costas de uma secular cadeira, um saquinho de “s” esquecido, sendo que alguns foram os que conseguiu apanhar do chão no afã da fuga aos gafanhotos e quando ia abastecer o círio com o azeite dos fieis e que o sacristão tratava de resgatar e guardar, fechar e entregar depois de desprovido de pó e inebriado pelo perfume de Deus.

António Luís

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