Nota do autor: Última crónica desta série, alusiva, justamente, às festas de S. Caetano, em Telhado (aldeia natal do autor), num relato “infantil” das mesmas, algures em finais da década de setenta, início da de oitenta. As festas de S. Caetano continuam, com naturais e impostas diferenças, a cumprir a sua tradição.
AS LÂMPADAS DE S. CAETANO
Pouco me interessava a romaria em si, ou sequer as obras beneméritas de S. Caetano e portanto tudo o que o levou à santidade, acanhado na sua também acanhada capela, assente no meio do povoado que se foi arrumando junto aos caminhos feitos depois em ruas; pouco me interessava o perfume da chanfana que se soltava das caçoilas pretas, assando nos fornos a lenha que havia em muitas casas e se espalhava pelos ares da aldeia; pouco me importava o ecletismo dos festejos ou as cores do cartaz das festas, o cansaço
dos mordomos, o nome dos conjuntos
das bandas
que abrilhantavam os bailes, fossem eles famosos ou espetaculares – conforme o anúncio do cartaz – conhecidos ou desconhecidos
– Vai dar prejuízo! – alvitravam os velhos do restelo da aldeia
a banda filarmónica ou as partes dela que cantavam e tocavam na solenidade da missa e na majestosa e devota procissão; pouco me importava a competência decorativa das mordomas, as suas mãos para a cozinha; já achava importante, contudo, a competência do fogueteiro, aquele que considerava um dos homens mais importantes e indispensáveis dos festejos e sempre admirava a compenetração com que apontava as canas a um determinado ponto do céu e esperávamos
ele e eu
o rebentamento do foguete; também não me importava muito com o acerto melódico e rítmico dos grupo de “Gaiteiros” que iam marcando os compassos com a visita solene, guiada e circunspecta às adegas, com os respetivos donos e proprietários a ofertar o caráter dos vinhos, se grosso ou palheto, se ácido ou nem por isso, com o dono de olhar e atenção presos ao esvaziar dos copos e ao veredito dos bebedores que antes de o introduzirem na circulação sanguínea lhe lançavam os seus olhares técnicos, ao primeiro travo se estalavam a boca e o curso dos olhos dava a primeira impressão, antes da sentença proferida com o estilo possível face à circunstância e portanto sempre
o salomónico
– Está bom!
e uma vez por outra, com as cautelas devidas ao dono
– Talvez lhe falte um bocadito de grau!
e a próxima adega na próxima porta, ao lado, derivado do amontoado de casas que ladeiam as ruas num alinhamento de arames; os mordomos já com olheiras de metro e meio apontando num canhenho o tamanho da contribuição para o balanço e contas dos festejos, as mulheres dos mordomos enfiadas na cozinha e para elas uma festa feita de panelas e pratos, temperos e serviço por todo o lado, a linha de caçoilas, alguidares de batatas, empregadas contratadas por 4 ou 5 dias
– Isto é uma canseira!
os aventais às flores com um nó cego por cima dos rabos e ao fundo da cintura
quando a tinham
as vassouras na sua azáfama de movimentos; os miúdos da aldeia no meio das terras e quintais a recolher as canas, cheirando o rabo dos cartuchos por via do cheiro da pólvora, empunhando depois as canas como fogueteiros em miniatura e quanto mais canas apanhadas, maior o estatuto, imitando depois a largura dos passos do fogueteiro a sério bem como as suas decisões em apontar para determinada zona do céu onde o estrondo fosse mais bem distribuído
– Os morteiros são os melhores!
e tudo isto se passava sob os enfeites pendurados ao longo do traçado das ruas, que derivavam do largo principal
da capela de S. Caetano
e subiam e desciam as ruas, os enfeites umas fitas de papel colorido, pacientemente recortado em tiras e colado num cordel a aglutinante de massa de farinha que depois de seca fazia de cola, as fitas feitas em infinitas sessões noturnas, em garagens ou alpendres generosos de espaço, meses antes da festa e depois, uns dias antes da catarse, espalhadas pelas ruas num ziguezague estudado, depois sopradas pelo vento e que por ele faziam um marulhar murmurado, as fitas toldando de cor o espaço entre as casas, isto é, coisas que importando alguma coisa, importavam pouco para mim, porque o que verdadeiramente me importava era a gambiarra de luzes às cores que abrilhantava o largo, a capela e uns 100 ou 200 metros das quatro ruas que confluem no largo, gambiarra essa que era a primeira coisa a ser colocada e quando descia a rua que levava ao largo, o vislumbre as lâmpadas preenchia-me o ego num silêncio secreto, que apenas eu sabia e por isso as contemplava, minutos infinitos, siderado de tanto gostar , vislumbre que depois aumentava com o tempo que levava à noite e para que um mordomo as ligasse e a festa resumia-se a pouco mais do que isso, sendo que a apreensão começava no último dia dos festejos, quando o eletricista falava aos mordomos que viria no dia seguinte retirá-las porque dois dias depois, começava outra festa noutra aldeia vizinha, mas fosse como fosse, eram 4 ou 5 dias em que a alegria das cores da gambiarra ofuscava o resto da festa e eram, verdadeiramente, aquilo que mais me importava.
António Luís