Anabela Bragança
Hoje, para correrem da Serra, escolho umas palavras do meu escritor preferido. Umas palavras acutilantes como sempre são as dele, mas também ternurentas e divertidas. Imaginemos um país onde a Morte tivesse tirado férias sem términus anunciado. O Caos está semeado. Todo o nosso mundo gira em torno de uma única certeza, a da morte. Todas as vidas, inteligentemente conduzidas, têm essa certeza por base. Sem essa certeza para onde caminhamos? Na sua forma de escrever intimista, Saramago conduz-nos pelos diferentes cenários e possíveis soluções. A Morte aparece-nos como figura feminina, de género bem definido e assumido, com um coração terno e sequioso de amor, triste pelo seu ofício terrível, mas absolutamente consciente da importância vital de existir. Vai-se apaixonar perdidamente por um jovem músico que já havia aparecido no seu radar, acabando por, em nome desse amor, lhe conceder mais tempo.
Este foi o último livro lido pelo meu António, numa fase em que o tamanho da lombada já era dissuasora, este pareceu-lhe alcançável. Por múltiplas dificuldades já fui eu que lhe terminei a leitura em voz alta. A leitura foi uma das várias formas de partilhar a Vida que desenvolvemos, foram muitas as vezes em que lhe li parágrafos, ou mesmo capítulos inteiros do que andasse a ler. Era engraçado o meu António. Não sabia que os livros podiam ser um mundo interessantíssimo, descobriu-o num dia de praia com um autor espanhol que só foi publicado depois de morrer, Mário de La cruz, mas este ficará para outras núpcias, que é como quem diz outras leituras. Hoje da serra descem palavras de Saramago, de “As Intermitências da Morte”
José Saramago
As Intermitências da Morte
“No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada.”
“Estava justamente a dar a meia noite, disse ele, quando o meu avô, que parecia mesmo a ponto de finar-se, abriu de repente os olhos, antes que soasse a última badalada no relógio da torre , como se se tivesse arrependido do passo que ia dar, e não morreu.”
Sinopse
Um dia ninguém morre. Nada. Nadinha. Nem os acidentados todos estropiados, nem os doentes no último suspiro, nem os envenenados, os enforcados ou mesmo os afogados. Ninguém. A confusão e a desconfiança instalam-se. O tempo, contudo, traz a segurança da imortalidade. A Vida passou a ser realmente bela. Sem medo da Parca todas as possibilidades existem. Mas como não há bela sem senão os problemas começam a surgir. As agências funerárias ficam às moscas, os seus cangalheiros deixam de ser capazes de sustentar as famílias que nem sequer conseguem morrer de fome. Nos hospitais existem engarrafamentos de doentes não curados e imortais a ocupar camas que deveria ser de ocupação transitória, na melhor das hipóteses uns dias antes do leito eterno garantido pela funerária. Na segurança social as contas, já de si apertadas, tornam-se caóticas, afinal só a morte tirou férias, o envelhecimento não… os políticos, esses (crentes) imortais, ficam com mais problemas em mãos do que mãos para os resolver, podem sempre organizar umas excursões à fronteira onde a morte dos outros continua a trabalhar com afinco e dedicação, mas isso pode ser contraproducente em termos eleitorais… A Maphia vem dar-lhes uma ajudinha.
Num outro plano da história a Morte está cansada, cansada do seu terrível ofício. Precisa de parar um pouco para pensar, para pôr as ideias em ordem. Precisa de interagir com a humanidade. Escolhe um jovem músico, precocemente condenado. Ao fazê-lo vai-se apaixonar e daí o descurar da sua actividade costumeira. Claro que boa profissional que é sabe que tem de retomar a actividade de forma regular, mas descontente do modus operandi anteriormente empreendido vai começar a actuar de forma diferente, uma semana antes do momento fatídico cada pessoa recebe uma linda missiva roxa para ter tempo de preparar tudo para a derradeira viagem, sem deixar assuntos pendentes nesta dimensão. Pobre Morte!! Tão ingénua!! A missiva espalha o terror e aumenta os assuntos deixados pendentes. Mas a morte essa volta a ser certeza…
Boa semana com livros!!!
Anabela Bragança