Marília Alves

O Qatar recebe a Copa do Mundo FIFA de 2022, na qual participará a seleção portuguesa, entre os dias 20 de novembro e 18 de dezembro. Este acontecimento maior do futebol mundial, deveria ser, acima de tudo, o paradigma dos valores inerentes ao desporto e à sociedade. Contudo, tendo em conta as leis existentes no país anfitrião, o que acontece é exactamente o oposto, na medida em que é governado por um emir, não eleito, cujo relações-públicas diz que a homossexualidade é uma doença e quem dela padece pode ir para a prisão. Um país onde a democracia, os direitos, liberdades e garantias do povo não existem, para as mulheres especificamente, que não têm direitos, têm dono. Realidade que está em contradição com os valores proclamados por Pierre de Coubertin, o fundador dos jogos olímpicos modernos, pelo que esta competição, claramente, não vangloria os valores éticos no desporto/prática desportiva, mas sim os milhões do petróleo, num país em que os autóctones vivem confortavelmente, mas sem liberdade.
Nesta conformidade, o Emirado do Qatar não foi escolhido tendo em conta princípios, valores e ética, mas sim pelo peso do vil metal, através de sacos azuis para quem votou e favoreceu a realização deste campeonato numa nação com estas características, até porque, do ponto de vista desportivo, o futebol não é aí muito tradicional. Aliás, o Qatar participará no Mundial de Futebol 2022 apenas por ser país-sede. Nada disto é novo, na medida em que, durante décadas, a FIFA foi presidida por um ex-SS, pelo que que não surge como uma organização que se preocupe muito com valores e princípios, sendo apesar de tudo estranho que possa acontecer em pleno século 21. Para além do mencionado e para que a megalomania ditatorial funcionasse, morreram milhares de trabalhadores imigrantes e que, à luz da legislação ocidental, são consideradas escravos, num país onde o dinheiro é o que não falta e meios para pagar e tratar condignamente os trabalhadores. E aqui que reside o verdadeiro paradoxo.
O país investiu em infraestruturas faraónicas, com destaque para a construção de um novo aeroporto, novas estradas, e oito estádios. Só que – por cada construção – foi derramado sangue migrante. Muito sangue derramado de cidadãos honestos e cheio de esperança que foram procurar no Qatar meios para assegurar a sua sobrevivência e das suas famílias. A realidade é triste: foram sacrificadas vidas em prol de umas construções para o mundo ver. De acordo com uma investigação do jornal britânico ‘The Guardian’, cerca de 12 migrantes morreram por semana desde que a organização da competição foi atribuída ao país. Morreram mais de 6500 trabalhadores, originários de países como o Sri Lanka, o Bangladesh, Nepal, Índia e Paquistão. Nenhum cidadão do Qatar, país anfitrião, morreu na edificação das infraestruturas que irão receber o Mundial da Vergonha (por ex., os nativos não pagam impostos e dois terços da população não trabalha, nem tem sequer ocupação).
O desrespeito pelos direitos humanos dos trabalhadores que colocaram de pé os estádios e as infraestruturas onde terá lugar o acontecimento maior do futebol mundial, obrigados a trabalhar sob temperaturas escaldantes que se situam acima dos 40 °C, chega ao ponto de os empregadores se apoderarem dos vistos de entrada, dos passaportes e das autorizações de trabalho e residência dos pobres migrantes. Não admira, assim, que, para milhares deles, a jornada de trabalho se prolongue por seis dias por semana, em condições deploráveis, sendo frequentes períodos de trabalho de 12 a 14 horas e até casos de escravos que trabalharam 148 dias consecutivos sem uma única folga. Com a aproximação do torneio e a aceleração das obras, a situação agravou-se.
Logo, como é que algum verdadeiro e genuíno entusiasta do desporto consegue comemorar um qualquer feito num estádio construído sobre caveiras e onde nem sequer ele – o adepto – tem liberdade de ser ele próprio. É triste, mas a bola está a ser jogada neste rectângulo, disputa-se a bola, mas o que aí verdadeiramente “rola” são negócios fabulosos de petróleo e armamento, conjuras geopolíticas, fundamentalismos religiosos, opressão de mulheres, de migrantes e de minorias, num absoluto desprezo pelos direitos fundamentais e pela dignidade humana. É este o belo espectáculo que o mundo está prestes a aplaudir. E tudo isto não é contestado de forma veemente por ninguém, apesar de alguns atletas já se terem pronunciado – não de forma muito estridente -, mas denotando uma clara censura. Relativamente ao presidente da Federação Portuguesa de Futebol, ainda não ouvimos nenhuma pronuncia sobre esta barbaridade, como com a quase generalidade das federações europeias, o que significa que, mesmo no ocidente, os altos representantes desses organismos não querem saber minimamente de aspectos básicos das regras da vida em sociedade democrática e livre.
Muito bem Marília
A situação que se espera nesta espécie de oásis -com buracos de vidas e de injustiças vis- não será de afrontamento ao regime, mas de aplauso ao sucesso dos petrodolares.
Aliás, teremos os seres mais bem pagos do mundo a exibirem os brinquinhos de diamantes para aquela gente com rodilha na cabeça.
Obrigado por alertar.
Caro Dr. Luís Amante.
Fico sempre grata pela sua opinião relativamente ao que escrevo.
Li agora que a cantora Shakira recusou actuar na cerimónia de abertura do Mundial e terá recusado uma quantia milionária.
Felizmente, há sempre quem diga não.
Abraço