Marília Alves
Na Mouraria, um incêndio num rés-do-chão, ao início da noite do dia 4 de fevereiro, provocou a morte a um homem de 30 anos e a um jovem de 14, feriu 14 pessoas e desalojou 22. As vítimas mortais eram de nacionalidade indiana e todos os desalojados imigrantes asiáticos. E é a crónica de uma tragédia anunciada, tendo em conta as condições desumanas em que vivem as populações imigrantes que habitam o bairro. As duas pessoas que faleceram não foram capazes de sair de uma casa num incêndio, porque o espaço estava tão sobrelotado que não conseguiram sequer passar.
O prédio em questão estaria insolvente e foi alienado a uma instituição financeira, sendo usado para alojamento local, e o rés-do-chão teria sido, posteriormente, vendido a um estrangeiro, o qual sub-arrendaria um dos apartamentos a imigrantes seus pares, que pagariam à volta de 150 euros por cada colchão/vaga. À custa deste contexto, alguém ganhava 3.300 euros por mês e 22 pessoas sobreviviam num amontoado de colchões e beliches, sem qualquer dignidade, nem condições higiénicas básicas.
Existe Odemira no coração de Lisboa, e se muitos olham para o lado é porque muitos lucram com isso, numa cidade que é apregoada como “o centro do mundo”, deixam-se crescer profundas desigualdades, mercantilizando o milímetro. É o centro do mundo e quiçá do universo, para justificar os milhões que estão a ser gastos com um evento religioso; mas é o centro da miséria quando, nas ruas de alguns bairros, não faltam anúncios de colchões para arrendar desde 160 euros por mês, muitas vezes, em esquema de “cama quente”, paga-se para dormir algumas horas, alternando com outras pessoas. Depressa esquecemos que somos um País onde as pessoas fugiam “a salto” para França. Viviam miseravelmente em “bidons villes“, onde sofriam todas as formas de humilhação e de exclusão social.
Quem, claramente, olha para o lado é a Câmara Municipal de Lisboa, para além de várias entidades que têm atribuições nestas áreas, e seja na imigração ou na habitação. As câmaras são muito exigentes quando se trata de passar a licença de utilização das habitações, contudo, depois não tratam de verificar/fiscalizar se efetivamente estão a ser cumpridas ou não, apesar de nas autarquias, com mais população, existirem quadros técnicos para o efeito, que parecem não ver o óbvio.
Lucram as empresas que têm mão-de-obra barata, os proprietários que fecham os olhos e os estrangeiros que exploram os pares. O incêndio da Mouraria veio destapar o que todos sabiam. Que há uma classe de quase escravos estrangeiros, tal-qualmente como portugueses que trabalham e são paupérrimos, porque os ordenados não lhe permitem sobreviver condignamente, vivendo na dependência dos pais/família ou sujeitando-se às mesmas condições dos imigrantes em apreço.
A indignidade das condições habitacionais por todo o país é visível a olho nú— e há vários anos. Entre a inflação nas rendas, o mercado negro do arrendamento, os despejos ilegais e o aumento das taxas de juro nos créditos à habitação, a crise parece só poder agravar-se. Os vistos Gold, máquinas de lavar dinheiro ou de fixar reformados ricos, mudaram as cidades de Lisboa, Porto e do Algarve, e agora o problema está a arrastar-se aos arredores. Vendem-se apartamentos com idosos dentro e chega-se ao ponto de indicar (nos anúncios) as idades dos mesmos. Os inquilinos mais frágeis, nas zonas mais nobres das cidades, sofrem verdadeiras perseguições. Enquanto isto, escancaram-se as portas aos estrangeiros ricos, que beneficiam de benefícios fiscais atractivos que todos nós autóctones gostaríamos de ter.
Somos, claramente, um País que não trata bem os imigrantes, nem os jovens, nem os velhos, nem os pobres. É necessário que os dinheiros públicos sejam gastos naquilo que é essencial, em primeiro lugar. Após as necessidades básicas estarem preenchidas – e como na canção de Sérgio Godinho: “A paz, o Pão, Habitação, Saúde, Educação” – então sim partimos para as despesas voluptuárias, como sucede nem qualquer nação desenvolvida. No nosso caso, é o contrário, sendo que tudo isto tem sido validado pelos cidadãos.