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Marília Alves

O catolicismo tornou a sexualidade humana refém do pecado – da culpa. A mortificação dos desejos pregada dentro da Igreja, os rigores cínicos do celibato contranatural e um universo de proibições, que transforma quase todas as práticas sexuais em transgressões capitais, não elimina os instintos sexuais e consegue, sim, instituir a perversidade.  E, tristemente, o ser humano é também isto. E é assim há muito tempo e só deixa de o ser pelo posicionamento de quem tem responsabilidades, no caso as hierarquias do clero católico.

As conclusões da Comissão Independente que, durante um ano, investigou os casos de Abuso Sexual de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, foram recentemente apresentadas. Sob o lema “dar voz ao silêncio“, surgiram centenas de testemunhos. Admite-se que terá havido, no mínimo, 4.815 vítimas (dos 0 aos 18 anos) de abusos sexuais, no período de tempo abrangido pelo estudo, com início em 1950, e que foram silenciadas pelas cúpulas da Igreja.

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Não é nada de novo: é uma realidade que sempre foi do conhecimento de toda a sociedade, só que agora levanta-se o véu, ou a sotaina no caso, a tudo o que existe de mais abominável. Vidas de crianças e adolescentes molestados pela perversão de quem tinha por obrigação protegê-las. Vítimas que, na maioria das vezes, eram provenientes de famílias pobres e que os pais entregaram à Igreja para apoiar e formar, que a Igreja devia proteger e que traiu escondendo crimes hediondos. E não há nada de mais hediondo do que o abuso sexual de uma criança inocente.

E julgo que existem muitas mais situações que não foram, ainda, denunciadas, assim como os silêncios que as encobriram/encobrem. As pessoas que um dia foram abusadas por padres e leigos protegidos pela Igreja, não denunciam por vergonha, por medo de represálias, mas também por recearem reviver o sofrimento de situações traumáticas. Mas quando uma pessoa denuncia e encontra um contexto favorecedor e confiável, outras ganham coragem para “quebrar o muro de silêncio” que as cerca há tanto tempo. E podem ainda falar. Tem sido assim nos outros países e Portugal não será excepção.

Os abusos sexuais dentro da Igreja Católica estão a ser denunciados desde o final do século XX e início do XXI, quando rebentaram os primeiros escândalos de abuso de menores por padres, sobretudo nas democracias ditas desenvolvidas. Na América, quem é que não viu o filme “Spotlight” sobre a investigação jornalística que desencadeou uma avalanche de denúncias dos abusos cometidos pela Igreja nos EUA a crianças da comunidade. Ao investigarem a fundo, dão-se conta de décadas de encobrimentos e cumplicidades que envolvem os mais altos níveis das instituições da cidade de Boston, seja a nível religioso ou mesmo político.

Este caso chegou às primeiras páginas dos jornais de todo o Mundo, abalou, profundamente, a Igreja Católica. Desde então, vários casos similares foram tornados públicos, muitas vítimas contaram as suas histórias e muitos padres foram condenados. Diz-se que a Igreja estadunidense faliu pelas indemnizações pagas, 4 bilhões de dólares, ainda que, seguramente, esse montante seja insuficiente para extirpar os abusos.

Depois disso, lemos os relatos sobre as investigações nomeadas pelos poderes públicos em países como a Austrália, Irlanda e Espanha, ou levadas a cabo em França ou Alemanha por comissões independentes idênticas àquela que agora concluiu o seu trabalho em Portugal. Também nós não podíamos dizer que não sabíamos, alegando viver num país de brandos costumes.

Resulta desses relatos e tal como surge agora no caso português, a descrição de um padrão de abuso persistente e continuado. E que a Igreja ocultou sob o manto do silêncio estes crimes deliberadamente, durante demasiado tempo. Colocou a sua reputação e imagem – o seu poder – acima das tragédias demolidoras de vidas humanas.  E são visíveis as resistências que existem e ainda escutámos, de bispos portugueses a tentarem negar a realidade ou a procurar minimizá-la. Depois de terem passado ao lado de denúncias e de petições assinadas por grupos de cidadãos católicos. Com a cumplicidade de responsáveis políticos ao mais alto nível.

A Comissão teve a colaboração da Igreja, mas alguns bispos recusaram-se a participar da investigação. Houve demasiados elementos do clero que não quiseram cooperar, inclusive com a desculpa de que foram “outros tempos”. Levou demasiado tempo a abertura dos arquivos diocesanos aos investigadores da Comissão.  Há ainda, seguramente, milhares de vítimas que continuam a sofrer em silêncio. E, as que falaram, pedem apoio psicológico, não indeminizações.  Estima-se, ainda, que 100 abusadores ainda estejam em funções, pois a Igreja nada fez para os afastar.

Após anos de especulação, estes actos de violência indescritíveis estão à vista e as vítimas podem falar. Contudo, é importante que a Igreja peça perdão às vitimas, mas, sobretudo, que prove com actos e não apenas com palavras, o seu arrependimento e o que está disposta a fazer para reduzir ao máximo as circunstâncias que permitiram os abusos. E isso só conseguirá com a transparência, aproximando a instituição à sociedade e aos valores civilizacionais próprios das democracias actuais.

 

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