David Gonçalves de Almeida
O episódio já era nosso conhecido. Os livros de António de Vasconcelos e também do Visconde de Sanches de Frias, ao tratarem da figura de Brás Garcia Mascarenhas (1596-1656), fidalgo aventureiro, militar, escritor e poeta, natural de Avô, aludem ao motim ocorrido em Travanca de Farinha Podre no Verão de 1640.
No entanto, a história ganhou para nós mais projecção e actualidade quando em 2017 passou a fazer parte do livro intitulado 1640. Deana Barroqueiro, a autora deste romance histórico com cerca de 900 páginas, põe na boca de Brás Garcia (pág. 294 e seguintes) o relato do que realmente se passou: “Pantaleão servia há 8 anos, em lugar do nosso irmão Manuel, como prior de Travanca de Farinha Podre, uma freguesia de grossa renda, muito cobiçada. Os meus inimigos aproveitando-se da sua ausência em Roma, congeminaram uma intriga para o substituir por um clérigo da sua parentela. Ver Pantaleão privado do que era seu por direito, com o pleito que lhes movera em seu nome a arrastar-se na justiça, sem fim à vista, foi a gota de água que fez transbordar a minha fúria e esquecer os propósitos de paz e humildade. No Verão de 40, quando com grande pompa, o padre usurpador se preparava para tomar posse da paróquia do meu irmão, festejando a nossa derrota com um banquete para muitos convidados, entre os quais sobressaiam os meus inimigos, interrompi-lhes a comezaina, invadindo a casa paroquial com um bando de parentes, amigos e criados valentões. Saíra de casa com o meu bando de acólitos, de madrugada e em segredo, seguindo para Travanca por matagais e bosques a fim de passarmos despercebidos; entrámos na vila [Travanca nunca foi vila, Avô sim] embuçados e atacámos de surpresa o priorado. De armas em riste, lançámo-nos sobre os surpresos comensais, como se fossem hereges holandeses [Brás havia combatido no Brasil] e, apesar de serem muitos e nós poucos, corremo-los a golpes de espada, cacetes e varapaus.”
Prossegue Brás Garcia: “Poucos ripostaram, muitos preferiram salvar a pele, saltando pelas janelas, fugindo para a Igreja em busca de santuário, escondendo-se sob as mesas, dentro dos armários e até do confessionário, onde a minha fúria os perseguiu e caçou, sem me importunar com o sacrilégio.”
No final da refrega, deixando mortos e feridos, partiram dali “sem ver ver vivalma, pois mal ouvira os primeiros sons da batalha, o povo morto de medo, fechara-se em casa. Apressámo-nos a regressar a Avô com os mesmos cuidados do segredo da ida. Não temia pela sorte dos meus valentes companheiros, seguro de que não haviam sido reconhecidos e, portanto, estavam livres das perseguições da justiça. Já eu não poderia esperar o mesmo desfecho, pois todos me conheciam em Travanca de Farinha Podre como o irmão dos padres Manuel e Pantaleão Garcia.”
Decide então homiziar-se (fugir à ação da justiça), sem se afastar muito de Avô. Foi para perto de Viseu, “acoitar-se” em casa de Jacinto Freire de Andrade, Abade de Santa Maria de Chãs, amigo do seu irmão e “grande patriota e partidário do duque de Bragança.”
Dá-se o 1º de Dezembro (o domínio espanhol é derrubado e D. João IV, Duque de Bragança, é proclamado rei de Portugal). Entretanto Brás Garcia vai até Lisboa onde se encontra com altas personalidades e chega ao contacto com o novo Rei. Avançando um pouco na leitura do livro, ficamos a saber que o epílogo desta “aventura” em terras de Farinha Podre foi favorável a Brás Garcia de Mascarenhas: a pedido de D. João IV o Abade Jacinto conta a história do assalto à paróquia de Santiago de Travanca de Farinha Podre e a batalha travada em defesa de Pantaleão. “-Faz pela minha Coroa o que fizeste pela igreja do teu irmão e estamos reconciliados” – terá dito o Rei, absolvendo, assim, Brás Garcia.
Estamos perante um livro que, além da particularidade de fazer eco de pessoas e factos tão espacialmente próximos de nós, aconselhamos a ler. Refere a sinopse: “Quatro guias singulares conduzem o leitor nesta viagem ao passado, através dos seus dramas pessoais e colectivos: o poeta proscrito Brás Garcia Mascarenhas, autor da epopeia Viriato Trágico; a professa Violante do Céu, a Décima Musa da poesia barroca, enclausurada no convento; D. Francisco Manuel de Melo, o maior prosador ibérico do século XVII, prisioneiro na Torre; e o Padre António Vieira, o mais brilhante pregador do seu tempo, a contas com a Inquisição.”
Ao consultarmos os livros de registos de baptismos, casamentos e óbitos da “Igreja de Santiago de Travanqua” encontramos redigidos e assinados pelos irmãos Pantaleão Garcia e Manuel os ditos assentos referentes aos anos anteriores e posteriores a 1640. Por sua vez, em Avô, ainda hoje podemos apreciar a Casa de Brás Garcia Mascarenhas, classificada como de Interesse Municipal atendendo ao seu significado histórico e cultural.
Brás Garcia Mascarenhas nasceu na Vila de Avô, Oliveira do Hospital, a 3 de Fevereiro de 1596, e aí faleceu a 8 de Agosto de 1656. Estudou em Coimbra, mas teve de fugir para Madrid por ter cometido um crime. Viajou por vários países da Europa e fixou-se algum tempo no Brasil, onde combateu os Holandeses, regressando a Portugal um pouco antes de D. João IV ser aclamado rei. Participou ativamente nas lutas pela independência contra o domínio filipino, mas acabou por ser acusado de alta traição e ser preso. Absolvido pelo rei devido à falsidade das acusações, termina os seus dias escrevendo a epopeia Viriato Trágico em vinte cantos e oitava rima, que foi, postumamente, publicada em 1699.”