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Marília Alves

Nas redes sociais, recentemente, chamou-me a atenção, uma imagem de uma mulher a amamentar o filho, que ilustrava os resultados de um estudo que diz que as mães ainda se sentem desconfortáveis ao amamentar em público. Amamentar é um acto de amor maior, a prová-lo está a sobrevivência da nossa espécie. Contudo, o machismo continua a dizer que assédio sexual é “galanteio”, que a utilização do corpo das mulheres na publicidade é aceitável, que violência doméstica é cultura, (…), mas o acto de amamentar deve ser tapado com o pano.

Tudo isto lembra-me que há coisas de que não podemos esquecer e que continuam a ser tapadas com o pano. Que o preconceito e a discriminação prevalecem, apesar de todo o caminho percorrido. E o lugar das mulheres sempre foi definido – na justa medida dos seus interesses –  pelos homens, pela igreja e pelas instituições sociais. Tudo isto surge-me neste Dia da Mulher. Penso no que é ser mulher e no tanto que há para ser feito. E no que, ainda, há, em pleno século 21, para destapar.

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Só em 2022, foram mortas quase trinta mulheres em Portugal. E os números são já oficiais. Por moderno e multidisciplinar que seja o apoio às vítimas e por mais esforços pedagógicos que se façam, muitas mulheres (e, no caminho, também os filhos) continuam a ser assassinadas por homens com quem tinham (ou tinham tido) uma relação íntima. As relações de intimidade são espaço de refúgio e conforto para muitas/os, mas podem ser um lugar mais perigoso para quem tem de observar, todos os dias, regras não escritas de subordinação –  a desigualdade.

Num caso de violência doméstica que chegou ao Tribunal e que veio, há poucos meses, a público, o processo foi suspenso provisoriamente e mediante a obrigação de o agressor “realizar, com a concordância da ofendida, jantar e passeio lúdico (…), entre outros, concertos, espectáculos, revista, teatro.” A Justiça a obrigar a vítima a permanecer vítima para que se cale e deixa de apresentar queixa. E que sirva de exemplo para outras não apresentarem queixa. Assim se baixam à força os números de incidência da violência doméstica.

Por vergonha e por medo, centenas e centenas de mulheres continuam a aguentar caladas décadas de maus-tratos. E, quantas vezes, os ciclos da violência e relacionamentos abusivos acabam com a morte da mulher às mãos do agressor. Vítimas que, na maioria das vezes, já tinham apresentado queixa. As suspeitas de corrupção bastam para que alguém seja preso preventivamente; mas alguém que ameace outrem de morte pode continuar na sua vidinha até que cumpra as ameaças. O que a Justiça portuguesa nos diz, através deste modelo de actuação, é que o património vale mais do que a vida – ou, pelo menos, do que certas vidas.

“Tem que saber amar / saber sofrer pelo seu amor / E ser só perdão”, é um excerto do Soneto da Mulher Ideal, de Vinicius de Moraes, e que vai de encontro ao pensamento social machista que prevalece. Às mulheres continua-se a dizer “tens que aceitar e perdoar (…) a vida é assim (…) há que ter paciência (…) os homens descontrolam-se facilmente (…) mas ele gosta de ti e dos filhos”. Ora, a violência para com as mulheres nada tem a ver com amor. Tem a ver com cobardia, despeito e posse.

A violência, a perseguição, o horror entre quatro paredes é, exactamente, o contrário do amor. E quem bate uma vez continuará a bater, é uma questão de tempo e de oportunidade. Foi por amor. Todos ouvimos esta justificação várias vezes. No meu caso, com frequência, pois trabalho com agressores conjugais condenados pela Justiça. Bati-lhe por amor, matei-a por amor. E quantas vezes mulheres vítimas não são desvalorizadas, humilhadas, re-vitimizadas pelos preconceitos reproduzidos pela magistratura.

Prisão preventiva e julgamentos céleres: são estes os instrumentos capazes de travar este flagelo sobre as mulheres. Teriam também um efeito pedagógico, quer sobre os criminosos, quer sobre as vítimas. Eles pensariam duas vezes antes de ameaçar. Elas não esperariam pela ameaça de morte – ou pela própria morte – para denunciarem a violência a que são sujeitas.

É importante existirem dias, assim, que nos recordem o tanto que existe para ser feito. Dias que nos recordem que se diz às mulheres que amamentar em público é constrangedor, mas que a violência doméstica deve ser tolerada.  Mas é também importante que exista a coragem para mudar o paradigma, e que o Soneto da Mulher Ideal adquira outra configuração, mais humana e igualitária.

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