Obra da autoria de David G. Almeida, apresentada no passado dia 04 de dezembro de 2022 na sede Editorial Moura Pinto, com sede em Coja, no contexto do Bicentenário da Revolução Liberal, o 3º da série “Cadernos Vadios” intitulado “O Caso da Queima da Pólvora”, episódio ocorrido em 1832 e que teve como desfecho o fuzilamento no Terreiro do Rossio de Santo António, em Viseu, no dia 21 de Março de 1833, de sete liberais penacovenses, alguns deles inocentes.
“O que vou contar aqui não o inventei nem é um delicioso conto árabe das “Mil e uma Noites”. É a história. E esta não se inventa. Trata-se de factos passados. (…) É mesmo possível que a tradição oral, que por largo tempo repete o eco dos acontecimentos memoráveis, ainda se lembre do que passo a contar, pois que tão duras provações não se apagam em um tão curto período da vida.”
É deste modo que J. Dias Ferrão – José Maria Dias Ferrão (1874-1943) – inicia a crónica publicada em dois números de A Comarca de Arganil (6 e 15 de Julho de 1922) com o título “A Queima da Pólvora”, passados que eram 90 anos sobre aqueles factos.
Conta este que, “fugindo às “alçadas”, ao fuzilamento das Comissões Mistas (…) erravam pela “Casconha”, terra pacífica e hospitaleira, alguns liberais, ardentes partidários de D. Pedro, vacilantes e estonteados, demorando-se mais onde as povoações lhes não eram hostis. Ali havia mesmo muitas pessoas comprometidas com a causa do Rei Soldado, pelo que, com mais razão, davam fácil albergaria aos que a monte se escapavam às perseguições do absolutismo.”
As primeiras referências escritas, relativas ao “Caso da Pólvora” terão surgido na Gazeta de Lisboa (edição de 28 de Agosto de 1832), órgão oficial do Governo.
“Ao General da Província da Beira constou que pelas serras do Bussaco e Boialvo aparecera uma quadrilha de salteadores e logo mandou um destacamento do Batalhão de Voluntários Realistas de Trancoso a persegui-los, o que os fez desaparecer daqueles sítios, de sorte que nada mais constou deles, até que o Corregedor de Tomar, e logo o mesmo General, e o de Abrantes, participaram que uma porção de cartuchame de fuzilaria, enviada daquela Praça para um Depósito, havia sido assaltada por uma quadrilha de trinta a quarenta salteadores; e que apesar da resistência feita pela escolta de oito homens comandados por um Sargento de Voluntários Realistas, conseguira a dita quadrilha apoderar-se do tal cartuchame, que inutilizou apenas viu qual era o objecto que encontrou.” – noticia a Gazeta – adiantando que o Governador de Coimbra mandou sair um Destacamento de Voluntários Realistas de Penela em perseguição dos “criminosos” enquanto que as Ordenanças dos distritos vizinhos “pegaram todas em armas para prenderem ou matarem aqueles salteadores” a que se juntaram os “povos” no sentido de “descobrir e acabar com semelhantes salteadores”.
Acabaram por ser as Ordenanças de Penacova, capitaneadas pelo Dr. Joaquim Correia de Almeida, como mais tarde revelará Joaquim Martins de Carvalho, que junto à povoação da Cortiça, teve “a fortuna de descobrir, numa mata, sete indivíduos da mesma quadrilha”, dos quais morreu um, sendo presos os restantes, dos quais saíram feridos dois. Foram encaminhados para o Quartel General da Província da Beira para serem julgados pela “Comissão Mista” sediada em Viseu. Segue-se a lista dos presos, salientando-se que “tal era o rancor das Ordenanças contra estes malvados”, que foi difícil “salvar-lhes as vidas, para a Lei os punir”.
É ainda a Gazeta que, em 12 de Setembro, publica a relação (emanada do Quartel General de Viseu e assinada por Luís António Salazar Moscoso) dos “trinta e tantos salteadores que no dia 5 (…) do mês de Agosto” haviam “inutilizado” o “cartuchame junto ao lugar da Cortiça” e agora iam ser enviados para aquela cidade. A maioria provinha da Cadeia da Portagem (Coimbra) e os restantes das cadeias de Arganil e Mortágua. Passados três meses (Dezembro de 1832) também a Crónica Constitucional do Porto, afecta aos Liberais, faz referência ao acontecido: “Em S. Martinho da Cortiça, junto à Ponte da “Murcella”, apoderaram-se os nossos de nove carros de pólvora, aproveitando-se do que lhes era preciso e inutilizando o resto(…)”. Noutra parte fala se da queima de 18 carros de pólvora que iam para o exército miguelista.
Em 1872 é O Conimbricense (nº 2584, de 30 de Abril de 1872) que traz à memória este acontecimento. Do mesmo “resultou a desgraça de várias povoações, a perseguição de grande número de pessoas e 8 fuzilamentos em Viseu” – recorda este periódico. Depois de “deixar falar a Gazeta de Lisboa, jornal oficial do governo de D. Miguel”, Joaquim Martins de Carvalho, propõe-se agora, passados 60 anos, contar ele próprio “como os factos se passaram”, e “narrar o acontecimento como teve lugar”, recorrendo, certamente, a testemunhos de pessoas ainda vivas na altura e que haviam sido testemunhas directas de muito do que aconteceu naquele dia 5 de Agosto de 1832, e subsequentes, na zona de S. Martinho da Cortiça.1
Na manhã daquele dia, escoltados por uma força de “voluntários realistas “, passavam “18 carros carregados de pólvora em cartuchame na Quinta da Cortiça, vindos de Abrantes, com direcção a Viseu e Lamego”. Por essa altura andaria José Maria de Oliveira “às peras, no seu quintal” quando um dos carreiros, que era dali perto, mais propriamente da Urgueira, “disse ao Sargento da força” que andava ali um “malhado”, isto é, como sabemos, um liberal. Logo após a denúncia, alguns soldados com as “armas engatilhadas” atiraram-se ao homem, prendendo-o. No entanto, alguns “homiziados políticos” que estavam por perto, “à espera das peras” de pronto acudiram e “ao estrondo de alguns tiros, que os homiziados dispararam, fugiram os voluntários, deixando o preso e a pólvora.”
É agora este grupo de liberais que passa a escoltar o carregamento. Na “Serra da Sanguinheda” no sítio onde naquele tempo estava a “Catraia”, “quebraram as barricas onde ia o cartuchame” e fizeram um monte de pólvora e por meio de um rastilho lançaram-lhe o fogo”, reservando, no entanto, uma carrada para seu uso. “Foi tal a detonação dos 17 carros de cartuchame que na distância de 5 Km tudo estremeceu”2 e no “sítio onde foi o incêndio a terra desapareceu, ficando uma grande cova, muito maior do que o vulto que fazia a pólvora”.
Martins de Carvalho enumera os “homiziados” que “acompanharam a pólvora”: António Homem de Figueiredo e Padre António Maia, ambos da Cruz do Soito, freguesia de Farinha Podre (hoje S. Pedro de Alva); os “dois Sandes”, da Carvoeira (freguesia de Penacova), que eram os irmãos Francisco de Sande Sarmento e Felisberto de Sande3; Manuel Brandão, “pai de João Brandão, que ainda vive”, refere J. Martins de Carvalho; José Morgado, de Midões; José Maria de Oliveira, da Cortiça, freguesia de Paradela, na altura concelho de Arganil; “uns rapazes da Cortiça” e José Maria Homem da Cunha e Guilherme Nunes da Silva4, filhos de Bernardo Homem da Cunha “que se achava preso em Almeida5 por liberal”. Um irmão destes, Francisco, que aquando da escaramuça inicial estava a “ouvir missa” na Igreja de S. Martinho da Cortiça, ainda se deslocou ali para retirar o José Maria e o Guilherme que tinham ido por mera curiosidade e ingenuidade, não o tendo conseguido. Achando que não tinha motivo para fugir, acabou por ser pronunciado pela Comissão Mista e fuzilado6 em Viseu. Entretanto o irmão José escapou ao fuzilamento porque o Pároco de S. Martinho, que até era seu tio, passou uma certidão de idade “na qual lhe ocultou três meses”, que “tanto era preciso para não chegar aos 17 anos.”
Os dias que se seguiram foram trágicos para a povoação da Cortiça e “circunvizinhas”, como S. Martinho, Sobreira, Ponte da Mucela, entre outras. Ali acudiram “guerrilhas miguelistas”, entre elas a do Sarzedo, capitaneada pelo Padre José António Ribeiro, e de “muitos outros pontos”. Vieram os Voluntários de Penela que juntamente com a Guerrilha do Sarzedo “queimaram casas, saquearam povoações” e “praticaram toda a qualidade de insultos”. Poucos dias depois chegaram também as Guerrilhas da Lousã, comandadas pelo capitão-mor Joaquim de Magalhães, querendo “continuar com os seus excessos de vandalismo”. Tiveram de ser os “soldados de Cavalaria nº 1” e o Conservador da Universidade, que tinha ido com aquela força militar, a refrearem essas intenções. É também a Guerrilha de Penacova que sendo “de todas a que se portou com mais moderação” que ali chega. Juntando-se ao grupo da Lousã capturaram “aqueles infelizes da Cortiça, da Carvoeira e um outro das proximidades de Midões”, que se encontravam refugiados “numa mata nas proximidades da Cortiça e sítio da Bica.”
Foi presa muita gente “que estava bem longe de concorrer para a queima da pólvora” e “muitos mais prenderiam se os pudessem apanhar7”. Gente da Sobreira, da Cortiça e de Farinha Podre. Muitos morreram nas prisões de Viseu, outros só quando se deu a libertação de Lamego puderam deixar a prisão daquela cidade.
Foi com base nesta descrição pessoal de Joaquim Martins de Carvalho, bem como nas publicações de O Conimbricense e da Gazeta de Lisboa e ainda em “informações particulares de diversos cavalheiros8” – conforme o próprio afirma – que António Luís de Sousa Henriques Seco, lente de Direito em Coimbra, na obra “Memórias do Tempo Passado e Presente para Lição dos Vindouros, publicada em 1880, dá notícia do “sucesso chamado a Queima da Pólvora da Murcella, ou melhor de S. Martinho da Cortiça”.
Henriques Seco começa por recordar “a perseguição que aos liberais foi feita desde 1828 a 1834” no contexto da qual “uma das terras do País que mais sofreu então foi a Vila de Midões”, onde terão “sido pronunciados 84 homens e 11 mulheres!”.
Mais acrescenta que os mesmos, “fugindo à perseguição9, vagavam por diferentes terras da província e, por acaso, nos primeiros dias do mês de Agosto de 1832 estacionavam junto à Cortiça (quilometro 42 da estrada de Coimbra a Celorico), onde os povos lhe não eram hostis, e havia também muitos cidadãos comprometidos na causa liberal.”
O relato de Henriques Seco introduz novos elementos – que se complementam – ao que registou Martins de Carvalho. Por sua vez, tece duras críticas ao que foi escrito na Gazeta: “É certo que em artigo da mesma Gazeta de Lisboa, de 28 de agosto, narrando com infidelidade o acontecimento que facciosamente atribui a uma quadrilha de trinta ou quarenta salteadores, se dá a noticia do encontro de sete das vitimas em uma mata junto à Cortiça (é a Mata da Bica) pelas ordenanças de Penacova, dos quais morreu um (falsamente, porque nenhum foi morto, com quanto deixassem em lamentável estado os dois irmãos Guilherme e José), ficaram dois feridos, e foram presos quatro.”
Voltando ao dia 5 de Agosto, ou melhor à véspera, ficamos agora a saber que “ao fim da tarde do dia 4, Francisco José Jorge, irmão do dr. José Joaquim Jorge, médico em Arganil, (…) mandou prevenir os mesmos liberais que se acautelassem, pois havia chegado à Ponte da Murcella (…) um troço de quarenta voluntários realistas, vindos de Abrantes, escoltando um comboio de vinte carros com pólvora.”
Ora, “na manhã de 5 estacionavam eles em uma eira, chamada a Eira do Forno (…). Por esta altura, José Maria de Oliveira e Martinho Alves, almocreve, que, “apesar de homiziados, continuavam o seu tráfico de azeite, desceram à casa deste a ajustar contas que entre si tinham.” 10
A acompanhar o comboio que tinha como destino Viseu ou Lamego, “ou talvez para as linhas do Porto” – refere H. Seco – vinham alguns “voluntários insolentes e insubordinados” que, ao passar pela Sobreira, “entoavam cantigas contra os malhados, e proferiam ameaças que prometiam realizar quando regressassem”. Ao aproximarem se da Cortiça, o carreiro José António, da Urgueira11, freguesia de S. Martinho, ao ver aqueles dois homens, disse, para os voluntários que estava ali um “malhado”.
Como já dissemos acima, alguns voluntários precipitaram-se sobre José Maria de Oliveira (ou sobre os dois). O que é certo é que vieram em seu auxílio os liberais 12 e depois de troca de alguns tiros prendem o próprio comandante que, apesar de ter fugido, foi capturado por António Rodrigues Brandão, e “intimam os carreiros a que continuem o seu caminho, no intuito de fazer entrega da pólvora ao capitão de ordenanças do Carapinhal, José Dias Brandão.”
Quando o comboio, escoltado apenas por um ou dois liberais, chegou à “Venda Cimeira” ou “Poços” aparecem pela frente trinta voluntários, que, havendo escoltado outro comboio de pólvora que por ali passara na semana anterior recolhiam agora a Abrantes. Travam tiroteio com os novos voluntários, e “dentro de pouco conseguem afugenta-los.”
Decidem agora: “em lugar da entrega da pólvora resolvem pôr-lhe fogo (…) ao norte do entroncamento do ramal da Raiva ou Catraia dos Poços (quilometro 46), onde não havia então casa alguma.”13
“Descarregada a pólvora, posta em montão e formado o rastilho, lança-lhe Manuel Brandão o fogo; mas havendo-se este apagado, dá isso lugar a um sublime acto de coragem14, praticado por um dos irmãos Sandes, da Carvoeira (o que fora sargento de caçadores n.° 8, e presumimos ser o Felisberto)”. Avançando “de bruços até quase ao montão, consegue reacender o rastilho e fazer arder a pólvora instantânea com estampido medonho15, sem ter sofrido senão leves crestaduras nos cabelos da parte posterior da cabeça!”
Como era de esperar, “depois das de Arganil chegam sucessivamente as guerrilhas e ordenanças da Lousã, Penacova e de outros concelhos (perfazendo um total de vinte e dois, segundo se nos assevera), os famosos voluntários de Penela, e alguma infanteria e cavalaria de Coimbra.”16
Os liberais procuraram salvar-se, transpondo o Mondego e refugiando-se na zona dos Fornos e Alcarraques, nas imediações de Coimbra. Mas nem todos conseguiram escapar.
“A devastação pelo saque e pelo incêndio, como era de esperar de tais hóspedes, pairou sobre as aldeias17 que pousam ou circundam a serra da Sanguinheda e aos maus tratos sucedem-se a prisão18 de todos que a malquerença não quis poupar (…). A povoação da Cortiça, recorda José Dias Ferrão, “foi toda reduzida a cinzas e “desde essa sinistra noite se lhe ficou chamando a Cortiça Queimada ”.
“Submetidos ao julgamento cruelíssimo da Comissão Mista”, no dia 21 de Março de 1833, “foram por ela condenados à morte os que referimos no texto19, introduzidos no oratório dos claustros do Seminário, e depois fuzilados por tropas das milícias de Santarém no Terreiro do Rocio de Santo António, naquele mesmo dia.
Chega a vitória dos Liberais. A cidade de Viseu “foi uma das terras do País onde os princípios liberais se arreigaram mais cedo e profundamente”20– sublinha Henriques Seco. Criou-se uma comissão para dirigir as honras fúnebres que iam ser prestadas às vítimas. Abriu-se uma subscrição e construiu-se um grande mausoléu nos claustros da Sé Catedral. No dia 25 de agosto de 1836 um “luzido préstito fúnebre” culminou na Catedral onde as ossadas foram depositadas no Mausoléu, para esse fim já preparado. Na inscrição esculpida no memorial consta não só o nome dos cidadãos acusados de terem estado envolvidos na “Queima da Pólvora”, mas também de outros condenados à pena capital pela referida Comissão.
Na medida em que os concelhos de Arganil e Penacova foram dos mais atingidos por este episódio, também o semanário A Comarca de Arganil e o Jornal de Penacova fizeram eco dos acontecimentos.
O Jornal de Penacova iniciou, na edição de 29 de Setembro de 1917, nº 821, a publicação de um conjunto de cinco artigos com o título “Conquista da Liberdade – os seus Mártires em Penacova”, onde com base no texto de H. Seco destaca os nomes dos “liberais” penacovenses, “vítimas, como tantos outros mártires da Liberdade, da ferocidade dos amigos do Absolutismo no nosso país” e que acabaram por ser condenados à pena capital e executados por fuzilamento em Viseu. Também alguns anos mais tarde (final dos anos 30) o Notícias de Penacova, pela pena de José Albino Ferreira, que assinava com o pseudónimo “A Carochinha”, a crónica “À Sombra Amena da Pérgola” recorda que “a Guerra Civil entre miguelistas e liberais foi violentíssima e teve em Penacova grande repercussão”, não fazendo muitos, passados cerca de cem anos, ideia “do que sofreram os penacovenses daquele tempo, pois só por tradição conhecem alguns factos mais notáveis.”
O jornal A Comarca de Arganil também não deixou de – no 90º aniversário dos fuzilamentos – assinalar o trágico desfecho a que a sucessão de acontecimentos conduziu. Nas edições de 6 e 7 de Julho de 1922 , números 1103 e 1104, publicou este semanário da Beira Serra, um conjunto de dois artigos subordinados ao título “A Queima da Pólvora”. Como referimos já, o mesmo tem a assinatura de J. Dias Ferrão (José Maria Dias Ferrão / 1874-1943, advogado e administrador de empresas e deputado), autor de, entre outras obras, “João Brandão”, publicada no Porto em 1928 pela Litografia Nacional e em 1931 pela Livraria Morais, e de “Concelho de Poiares – Memória Histórica, Descritiva, Biográfica, Económica, Administrativa e Crítica“, editado pela Tipografia Lousanense em 1905.
J. Dias Ferrão faz um minucioso relato, muito próximo da versão de Henriques Seco, acrescentando, no entanto, alguns pormenores interessantes. E a terminar a sua crónica, alerta para o facto de, por vezes, a história se repetir, mas que “ninguém se convença que o latrocínio e as violências possam ser as colunas de um regime político que não é amado pela colectividade que se propõe representar.”
Terminamos com o epitáfio gravado no Mausoléu que se encontra na Sé de Viseu, autêntica “memória do tempo passado e presente” para “lição dos vindouros”:
Pro libertate, charta, et regina Maria II nefando judicio insontes damnati et trucidati anno 1832 et 1833. [seguem-se os nomes]21 Eorumque cineribus, in hoc sarcophago requiescentibus, in odium invisae hujus temporis tyrannidis, et perpetuam memoriam patriae meritorum virorum, civitas visensis monumentum religiosíssimo voto, communibus expensis aeterne consecravit anno 1836 die 26 Augusti.22 |
1 Curiosamente, também o Dicionário “Portugal Antigo e o Moderno”, volume XII, aborda com algum destaque este caso, baseando-se essencialmente nas “Memórias” de Henriques Seco. Aqui, Pedro Angusto Ferreira, o continuador de Pinho Leal, tece ainda alguns comentários acerca das Lutas Liberais: “A convenção de Évora-Monte (26 de maio de 1834) ou a queda do governo realista pôs termo aos grandes excessos que ainda hoje conspurcam a memória daquele partido e que ajudaram a enterrá-lo; mas seguiram-se outros muitos excessos, – roubos, incêndios, ferimentos, espancamentos e mortes, – praticados pelos liberais e que enlutaram e aterraram por muito tempo o nosso país.“
2 O jornal “Notícias de Penacova” publicou, por volta de 1940, uma crónica sobre o caso onde se refere que “um velho de Friúmes que então era rapazito” ainda se recordava que toda a gente daquela freguesia ficara “assombrada” pois lhe parecera “um grande trovão que não sabiam explicar”.
3 Salienta Henriques Seco que “não se encontra na lista dos presos, mas está na do Mausoléu; era irmão de Francisco de Sande, e não há dúvida que foi uma das vítimas.”
4 Refere Henriques Seco: “Assim se assignava o filho de Bernardo Homem da Cunha. Não cause estranheza por isso o tomar apelidos diversos dos da família.”
5 Quando saiu da prisão “veio achar sua mulher na eternidade, dois filhos fuzilados em Viseu e as casas devoradas pelas chamas.”
6 Estando inocente, conta-se até que no acto da execução, enquanto os outros caíram mortos de imediato, Francisco Homem da Cunha permaneceu ileso, “tendo o comandante da força que os fuzilou, de mandar um soldado disparar-lhe um tiro no ouvido, com o que caiu morto”
7 Dirá H SECO: “Cumpre, porém, advertir que o despotismo raivoso encarcerou muita mais gente do que a constante da lista, com quanto não houvesse metido nem prego nem estopa na queima da pólvora”
8 “Os cavalheiros a quem devemos informações são: o sr. Luiz Ferreira de Figueiredo, por intermédio do sr. dr. António Gonçalves da Silva e Cunha, lente catedrático de medicina; o sr. padre Venâncio Gomes da Silva, prior da freguesia da Várzea Grande, no concelho de Góis, falecido a 2 de julho de 1876; o sr. António Francisco Dias Correia, da Cortiça, e ultimamente o sr. António Rodrigues Brandão, e o sr. padre António Mendes Alcântara, digno prior de Midões.” – enumera H. Seco.
9 H. Seco adianta mesmo uma lista: “António Joaquim, vulgo António do Arrabalde; António Rodrigues Brandão, de Midões, sobrinho de Manuel Brandão (hoje vivo). Francisco Rodrigues Brandão, irmão do antecedente, e pai do digno actual juiz de direito, António Soares de Albergaria; Francisco de Sande Sarmento, Francisco Soares da Costa Freire, de Travanca de Lagos (o segundo e último que ainda vive); Felisberto de Sande Sarmento; Joaquim António Marques, de Lobão, comarca de Tondela; José Antunes, da Várzea Negra, freguesia da Povoa de Midões; José Maria de Oliveira, vulgo o Panela a ferver; José Soares da Fonseca Magalhães, o Morgado de Midões, irmão do estadista Rodrigo da Fonseca Magalhães; Manuel Brandão, o Velho, do Casal da Senhora, junto a Midões, pai de João Victor da Silva Brandão, vulgo o João Brandão, e tio dos dois companheiros, António Rodrigues Brandão e Francisco Rodrigues Brandão e Martinho Alves, do Casal de Travancinha, comarca de Seia.”
10 Na versão de Martins de Carvalho, José Maria de Oliveira terá ido apanhar peras ao quintal. Diz HS : “Cumpre notar que, com quanto sejam todos uniformes no dito de José António, há todavia no modo estas variantes: tal o supõe dirigido somente a José Maria de Oliveira, na ocasião em que apanhava peras no quintal detrás de sua casa; tal ao mesmo, mas na ocasião em que á porta da rua conversava com uma rapariga sua vizinha; e tal ainda o ser dirigido somente a Martinho Alves, que era o que se diz conversava com a rapariga: prefiro a variante que acima apresento por ser de pessoa que tomou parte nos factos, e a asseverar com todas as aparências de convicção verdadeira.)
11 “Todos os carreiros eram das proximidades; é sabida a antiga manha do absolutismo, embargava homens, carros e cavalgaduras para o seu gratuito e forçado serviço; quando extenuados pelo cansaço se lhe tornavam inúteis, ou a equidade passageira lhe abrandava a dureza da natural condição, tinha a bondade de licencia-los tomando logo outros sobre o campo, para lhe prodigalizar igual honra e gratificação, sem que com isto pretendamos negar que os liberais fizessem excepcionalmente também gentilezas iguais” – recorda H. Seco.
12 Refere J. Dias Ferrão, na crónica a que mais à frente se faz referência, que o “Velho” Manuel Brandão, “tinha qualidades marciais, valente, arrojado, não temia a morte.” Manuel Brandão, “nos últimos dias da Invasão Francesa pertencera a um dos célebres “batalhões do chuço”, que eram formados de populares, fardados paisanos, armados de “chuços”, lanças, espadas, foices, armas caçadeiras e paus. E tinha comandado, por vezes, esta tropa fandanga, contra as hostes de Napoleão.”
13 É também Dias Ferrão que acrescenta: “De novo a pólvora volta às mãos de Manuel Brandão, que não sabe agora o que há-de fazer-lhe. Reúne-se o conselho de guerra. Desiste-se então de a mandar para o Carapinhal, onde, certamente, o capitão de ordenanças não saberia o que havia de fazer-lhe e de tal susto ficaria possuído que morreria só de a ver à porta.”
14 “Fatais consequências já se anteviam, quando um dos irmãos Sandes da Carvoeira, que fazia parte do grupo, se destaca, toma uma cova, que havia na terra junto ao monte da pólvora e, voltando-se para os companheiros, diz-lhes: não há-de já agora deixar de arder”. Reacende o rastilho e provoca a explosão. Apenas sofreu umas queimaduras no cabelo.” – Cf. Dias Ferrão.
15 “O estrondo foi enorme. Tremeram montes e vales. As povoações vizinhas iam morrendo de susto. Uma coluna de fumo encheu o espaço, como se uma densa nuvem, dessas que trazem no ventre as tempestades, envolvesse naquele instante todo o céu azul. Grave pronúncio de tragédia foi o que se desenrolou no ar, e que tão depressa se estendeu por toda a Casconha, como se esta boa terra tivesse merecido o castigo de deus, como as cidades malditas.” – Cf. Dias Ferrão.
16 Cf. J. Dias Ferrão: “Vieram depois forças regulares de Coimbra, mais voluntários realistas de Penela, guerrilhas da Serra da Estrela; do célebre Padre Joaquim, de Carragosela; de Jorge Boto, capitão-mor de Gouveia; os trabuqueiros do sicário António Soares de Albergaria, do Carregal; e, por último, as guerrilhas da Lousã. Três mil homens armados até aos dentes se reuniram na Venda Cimeira, arrebatados pelo entusiasmo da Causa que defendiam e indignados pela afronta que a mesma Causa sofreu na Casconha, resolveram tirar dura vingança.”
17 Muitos chefes de família foram ou mandaram os seus incorporar-se nas guerrilhas perseguidoras como meio de evitar o labéu de malhados, e assim pôr o próprio lar a coberto das hordas que sobrevinham.
18 “Por virtude da perseguição que lhes fizeram foram capturados, segundo consta da participação oficial, dirigida ao governo intruso, inserta na Gazeta de Lisboa de 13 de Setembro de 1832, os seguintes cidadãos: António Francisco; António Homem de Figueiredo e Sousa, da Cruz do Souto, irmão de D. Rita, mulher do capitão-mor José Félix, e este irmão de Bernardo Homem; António Joaquim de Moura; António José de Frias, da Sobreira; António (Padre) Maia, da Cruz do Souto; António Marques Guerra, dos Poços; António de Sousa Maldonado Bandeira; Bernardo Homem, da Cortiça (Neste há de certo equivoco, jazia já há muito nas cadeias de Almeida); Francisco, filho de Bernardo Homem, da Cortiça; Francisco de Sande, da Carvoeira; Guilherme, filho de Bernardo Homem, da Cortiça; João Pereira Saraiva; Joaquim José Gonçalves; José Maria, filho de Bernardo Homem, da Cortiça; José Félix da Cunha Figueiredo Castelo-Branco, que faleceu nas prisões; José Henriques, de Farinha Podre, alfaiate; José Joaquim Pereira, de Farinha Podre; José Lopes; José de Loureiro e Almeida, de Farinha Podre; José Inácio Martins; José Maria de Figueiredo Castelo-Branco, filho do dito capitão-mor José Félix da Cunha Castelo-Branco; José Maria de Oliveira, da Cortiça; Manuel Correia; Manuel Lourenço Gomes Cascão e Veríssimo Gonçalves.
19 Fuzilados. Todos do actual distrito administrativo de Coimbra: António Homem de Figueiredo e Sousa, natural da Cruz do Souto, freguesia de Farinha Podre; António Joaquim, solteiro, natural da Várzea de Candosa, junto a Midões; António (P.) da Maia, natural da Cruz do Souto, freguesia de S. Pedro, de Farinha Podre, pároco encomendado da freguesia do Covelo de Azere; Francisco Homem da Cunha, filho de Bernardo Homem e irmão de Guilherme Nunes, do lugar da Cortiça, freguesia de S. Martinho da Cortiça; Francisco de Sande Sarmento, solteiro, natural da Carvoeira, freguesia e concelho de Penacova; Felisberto de Sande, solteiro, natural da Carvoeira, freguesia e concelho de Penacova; Guilherme Nunes da Silva, filho de Bernardo Homem e irmão de Francisco Homem da Cunha e José Maria de Oliveira, natural da Cortiça, freguesia de Paradela.
Reafirma ainda Henriques Seco: “Prescindindo de avaliar a criminalidade do facto da queima da pólvora em face de um governo notoriamente usurpador e despótico, é ainda assim cousa assentada que alguns dos infelizes morreram inocentes, pois não tomaram nele a mínima parte, a saber: o padre António da Maia e António Homem de Figueiredo e Sousa, que foram expedidos ao sitio da queima pelo padre António Franco de Miranda e Abreu, prior de S. Martinho da Cortiça, e pelo padre Luciano José Pereira da Maia, vigário de Coja (ambos homiziados, e que nessa ocasião se achavam em Paço Velho, junto a Farinha Podre) para que obviassem á destruição da pólvora”. (…) Pôde por isso ter-se por assentado que a iniquidade e crueza dos da Comissão Mista correu parelhas com o cinismo da Gazeta de Lisboa.”
20 “Nos dias nefastos das execuções patenteou o seu ódio á tirania, evitando presenciar as angústias dolorosas das vítimas choradas que não podia valer, abandonando os próprios lares boa parte de seus filhos. Mas quando com o sol dos céus que vivifica a terra veio emparelhar-se o sol da liberdade para vivificar a natureza moral do homem, Viseu abraça-lhes as ossadas venerandas, e imprime-lhes o osculo da sua religiosa simpatia!”
21 PORTUGUESES: LAUREANO ANTONIO PINTO DE NORONHA, CAETANO JOSÉ PINHEIRO, ANTONIO ALBERTO PEREIRA PINTO MONTE ROIO, ANTONIO DA MAIA, PRESBÍTEROS SECULARES; SIMÃO DE VASCONCELLOS, PRESBÍTERO CISTERCIENSE; FRANCISCO DE SANDE SARMENTO, FELISBERTO DE SANDE, JOSÉ DE OLIVEIRA, JOSÉ MARIA DE OLIVEIRA, JOSÉ FRANCO, ANTÓNIO JOAQUIM GONÇALVES, ANTÓNIO JOAQUIM, ANTÓNIO HOMEM DE FIGUEIREDO E SOUSA, JOAQUIM JOSÉ DA SILVA, GUILHERME NUNES DA SILVA E LUIZ FERREIRA DA COSTA. HESPANHOES: D. PASCOAL ALPALHEZ. D.EUSÉBIO PASCAL, D. FERNANDO GUTIERRES GALON, D. BENTO JOSÉ, D. ANTONIO HIMNES, D. MANUEL SANCHES DE GARCIA.
22 “Pela adesão à liberdade, carta e rainha Maria II, por iniquas sentenças foram inocentemente condenados e fuzilados no ano de 1832 e1833. Descansam suas cinzas neste monumento, o qual em detestação da execranda tirania daquele tempo, e para memoria perpetua de varões tão beneméritos da pátria os cidadãos de Viseu religiosamente e por comum subscrição lhes dedicaram no dia 26 de agosto de 1836.”