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Marília Alves

Há quem defenda que o 25 de Abril foi uma revolução de homens. No que se refere à liberdade sexual, basta notar que o filme “O Último Tango em Paris” tornou-se símbolo dessa liberdade. Contudo, nesse filme consta uma violação, de uma mulher. O desaparecer de muitas convenções sociais e de outras fachadas foi, em parte, aparente, ou seja, não foi igual para todos. À semelhança de outros momentos da História, as liberdades a nível individual eram – foram – pensadas sobretudo para os homens. Tanto assim é que as mulheres continuam a ser alvo frequente de situações de abuso e assédio.

Falamos, por estes dias, do abuso de poder que atinge determinados contextos de dominação institucional masculina, e que acontece mesmo em instituições que defendem e fazem teoria em torno da igualdade de género, como as Academias. O que nos leva a concluir que o 25 de Abril ainda não passou por aí, sendo certo que todos aqueles que frequentaram contextos académicos, souberam sempre que uma qualquer incompatibilidade com um professor, era situação mais do que suficiente para ter de mudar de universidade para concluir o curso.

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A Academia é um espaço especialmente propenso ao abuso de poder. Pela sua organização fortemente hierarquizada, pela importância do domínio formal dos professores doutores e pela crescente precariedade dos investigadores, que tende a coincidir com o género, tendo em conta a chegada tardia das mulheres – porém, significativa – a um mundo que era predominantemente masculino. E mais importante do que isso, pela falta de vigilância e fiscalização externa da forma de funcionamento, bem como das regras explícitas e implícitas que enquadram o funcionamento destas instituições. Não é por acaso que o abuso acontece de cima para baixo e nunca de baixo para cima – é a consciência da impunidade total que permite ao “mestre” avanços a que o/a subordinado/a têm de se submeter, sem que estejam previstas nem regulamentadas formas de fiscalização efectiva e controlo, no que diz respeito à parte pedagógica e funcional dos cursos.

Recentemente (terça-feira,11), foi publicado, como capítulo de um livro coletivo da editora Routledge, um artigo de três ex-investigadoras e alunas do Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, adiante designado de CES. Trata-se de um artigo que, não mencionando nomes de pessoas, nem da instituição, aborda situações de abuso e assédio, moral e sexual. Mas qualquer pessoa ligada ao meio universitário português (e não só), percebe que é do referido Centro que o artigo fala. Os visados depressa se identificaram e o principal, o diretor emérito do CES, apressou-se a alegar a presunção de inocência na comunicação social.

Como já tinha sido grafitado na parede do CES, em 2018, “Todas Sabemos” … sabemos que o assédio nesses contextos existe. A reação que incomoda é mesmo a do visado, dito progressista de esquerda. Primeiro, procura desacreditar uma das autoras, a qual acusa de problemas de indisciplina, de comportamento e de insolência. E manteve o registo numa longa carta aos alunos, tentando defender-se através da destruição da reputação daquela. E não da negação clara e veemente dos factos. Depois, tenta puxar a esquerda “à sua sardinha” quando refere: “O objetivo é lançar lama sobre quem se distingue e luta por um mundo melhor. O neoliberalismo está a roubar a alma da solidariedade e da coesão social e criar subjetividades que canalizam os seus ressentimentos para acusações de que sabem não poder haver contraditório eficaz” (…), sendo certo, como todos sabemos, que o neoliberalismo defende uma Justiça independente, e como tal existem instrumentos jurídicos ao dispor de qualquer ofensa à honra e consideração que lhe é devida.

Normalmente, as denúncias de violência sexual são arrumadas com insinuações sobre a alegada loucura/maldade/promiscuidade das mulheres. Mas, no caso, é mais elaborado, culpando o neoliberalismo. Ora, o assédio e o abuso sexual vêm de todos os lados, não têm credos, partidos nem ideologias. Neste caso, remete-se a um contexto e ambiente que mais facilmente permitem estas situações, quando, em teoria, defendem exactamente o contrário. Aliás, qualquer instituição de ensino tem obrigação de promover todo o contrário daquilo que temos estado a referir.

Entretanto, às vozes da três ex-investigadoras e alunas do CES, autoras do artigo, outras duas se juntaram. E temos agora cinco mulheres, de cinco geografias diferentes. Contudo, até mesmo pessoas com responsabilidades e que, habitualmente, defendem as vítimas, agora reclamam que é preciso ter cuidado, pois há que salvaguardar o princípio da presunção da inocência. É incrível como para algumas pessoas a defesa dos direitos das vítimas de violência sexual só é feita na teoria e no abstrato. Quando atinge determinados contextos e como é o caso, o discurso muda. Muda porque surgiram nomes e os homens em questão são “grandes” e com capital de poder. E, não podemos esquecer, que o sistema sobrevive porque se alimenta de cumplicidades, medos e silêncios.

Perguntam-me com frequência “por que razão as vítimas não denunciam” ou “por que razão as vítimas demoram tanto tempo para falar?”. Sabemos que nada é simples quando falamos de violência sexual ou estruturas de poder e manutenção desse mesmo poder. Se mesmo pessoas que dizem compreender o que origina o silêncio das vítimas, agora questionam por que razão as vítimas não denunciaram às autoridades ou porque escolheram fazê-lo através da publicação de um artigo científico.

Que alternativas há para as vítimas? Se as vítimas não encontram segurança e ainda são alvo de um escrutínio imenso, qual é a melhor solução? Não falarem? Não denunciar? Continuarem no silêncio? Se fosse convosco, quereriam mesmo ser alvo de tudo isto? Deste escrutínio, ataques e descrença? Cada denúncia (seja feita nos moldes que for) é um ato de coragem e de força. Enfrentar o descrédito coletivo, um escrutínio esgotante e ainda a possibilidade de uma queixa crime por difamação, não é fácil e requere uma força colossal. Não há o mínimo de empatia perante as vítimas, toda a gente duvida delas, ninguém põe em causa os atos dos agressores, sobretudo se tiverem poder ou uma aura de autoridade moral.

Mais empatia pelas vítimas por favor!

Marília Alves

 

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