David Gonçalves de Almeida

Nada de especial haveria a dizer sobre o relatório que o Cura João Coimbra, pároco de S. Paio, redigiu em 1758, em resposta ao interrogatório emanado da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, não fosse a existência de um inusitado lapso na sua catalogação e arquivo.
Muitos desses relatórios – conhecidos como Memórias Paroquiais – chegaram a Lisboa, onde os respectivos manuscritos se encontram depositados e são hoje fonte preciosa para trabalhos sobre história local. Quando aquele organismo do Estado era dirigido por Sebastião José de Carvalho e Melo foram pedidas aos párocos as descrições geográficas, demográficas, históricas, económicas e administrativas das paróquias e povoações de todo o país.
Alguns anos antes, já o Padre Luís Cardoso, da Congregação do Oratório de Lisboa, vinha redigindo um Dicionário Geográfico com base nas “memórias paroquiais” que igualmente os párocos do reino tinham remetido para Lisboa em resposta já também solicitada por aquele serviço. Lamentavelmente, quase tudo isso se perdeu nas ruínas do terramoto de 1755, escapando apenas, as letras A, B e C do primeiro e segundo volumes, por estarem já impressas e guardadas em locais menos atingidos pela catástrofe.
O inquérito pós-terramoto estava dividido em três partes. Na primeira parte, sobre as povoações, pedia-se resposta a vinte e sete perguntas: onde ficava situada a freguesia e a sede da paróquia, de quem era a jurisdição da localidade, quantos fogos (vizinhos) e quantos habitantes tinha, que título tinha o pároco, de que rendas usufruía a igreja, se havia conventos, hospitais, misericórdias, ermidas e romarias; perguntava-se igualmente se havia alguma feira, se existiam “antiguidades”, fontes ou lagoas, ou muralhas e castelo, bem como personagens ilustres. Perguntava-se também pelos serviços de correio, pelas produções da terra e pelos danos do sismo de 1755. Na segunda parte, sobre as serras, colocavam-se treze questões e na terceira parte, sobre os rios, eram colocadas vinte perguntas. No final de cada uma destas partes era recomendado que fosse mencionada também “qualquer outra coisa notável” que não fizesse parte do interrogatório
Não sabemos se alguma vez alguém terá procurado, no meio de cerca de quatro mil registos, ou simplesmente consultado o índice geral, a “Memória Paroquial” respeitante a S. Paio (S. Paio de Farinha Podre, hoje S. Paio de Mondego). Se o fez terá provavelmente desistido. É que o que nos aparece no índice é o seguinte: Paio (São), Braga e Paio (São), Melgaço. Nada de S. Paio de Farinha Podre. Vasculhando melhor, ao chegar à letra F, deparámo-nos com duas referências a “Farinha Podre”: Farinha Pôdre, Ovar e Farinha Pôdre, Penacova!
Duas “Farinha Podre”? Quanto à que hoje tem o nome de S. Pedro de Alva, nada de novidade. Mas uma outra “Farinha Podre”, em Ovar? Isso é que desconhecíamos por completo. Fomos ver melhor e foi quando detectámos o acima referido erro de catalogação!
O que motivou este lapso? É que no meio daqueles milhares de relatórios alguém ao ver em letra manuscrita a palavra “Óvoa” achou que era “Ovar”! E porquê Óvoa? Se bem se recordam os estudiosos desta freguesia, S. Paio pertencia, à época, ao antigo concelho de Óvoa, hoje freguesia do município de Santa Comba Dão. Identificado o erro de catalogação é nosso dever fazer chegar ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo a existência deste equívoco, para posterior correcção.
Agora que temos à nossa frente o extraviado relatório do Padre João Coimbra, espreitemos um pouco do seu conteúdo. Redigido em 27 de Abril de 1758, o documento começa por referir que “esta terra denominada S. Payo de Farinha Podre, fica na Província da Beyra, Bispado de Coimbra, Comarca de Viseu, termo da villa de Ovoa, freg. chamada S. Payo. (…) Sua situação nem é monte, nem valle, nem desta se descobrem povoações.” Diz-se também que dista da “capital do Bispado, que é Coimbra, cinco léguas e quarenta de Lisboa.”
“Compreende a dita freguesia de noventa vizinhos [termo usado para designar fogos] e trezentas e tantas pessoas” – podemos igualmente ler. Outros dados curiosos ficaram registados: o pároco era Cura, apresentado [quer dizer nomeado] anualmente pelo Vigário de Farinha Podre, sendo a côngrua de “dez mil quinhentos e vinte e cinco almudes de vinho mosto, vinte e cinco alqueires de trigo, e doze alqueires e meyo de centeyo, que importão em vinte e cinco mil réis.”
As culturas “em mayor abundancia” eram azeite, vinho, milho, centeio e trigo, “o que não supre os gastos da terra”. Faz-se referência à Feira no “Casal das Ermidas” que se realizava no dia 5 de Agosto e durava cerca de três dias.
Curioso é o modo como termina o relato: “E assim satisfaço aos interrogatórios, que dizem respeito às cousas dignas de memoria; e aos mais não dou resposta porque não há que dizer ao que elles perguntão.”
Esperemos agora que S. Paio, despachado por engano para Ovar, regresse ao devido lugar no índice das Memórias Paroquiais…
Poi’s é!
… quem sabe, sabe.
Parabéns!